sábado, 13 de junho de 2015

SOBRE A POLÍTICA DE IDENTIDADES QUEER

TEXTO EM CONSTRUÇÃO.

Um dos maiores poderes, privilégios, do dominador é deter os meios de produção de narrativas e discursos, de produção de sentido para a realidade. O dominador, o homem branco, tem, há séculos, o domínio e a hegemonia sobre a produção da História, da Ciência, da Literatura, das Artes, enfim, de todas as formas de nomear e produzir sentido para o mundo, para a realidade. A partir disso, o homem branco se torna e se mantém como o centro, o referencial, dessa produção de sentido e tudo que existe vai ser dito e nomeado por ele, a partir dele e a partir de sua lógica de autocentralização. Assim, é o homem branco que define tudo que existe no mundo para além do home branco, que define o que todas as outras coisas são, e, sim, elas são coisas, no processo de formação do Sujeito do homem branco, todos os outros seres existentes são percebidos por ele como objetos do sujeito que esse homem autocentrado e produtor de sentido pra tudo é. É o homem branco que sempre nomeou e definiu e ainda nomeia e define o negro, a mulher, o indígena, a criança, os animais e a tudo que existe; é o homem branco que também nomeia e define a realidade que ele mesmo impõe aos negros, às mulheres, aos indígenas, aos animais e a tudo que existe.

Esse é um poder tremendo: o poder de dizer, de nomear e de definir o que o outro é e o poder de dizer, de definir e de nomear a realidade que o outro experimenta. Assim, podemos observar que tudo que foi produzido até hoje sobre negros, mulheres e indígenas é, na verdade, a nomeação e definição que o homem branco faz desses objetos. Tudo que foi produzido até hoje sobre a realidade dessas condições é o que convém ao homem branco dizer sobre elas: o negro não foi escravizado, ele é escravo; a mulher é naturalmente frágil, incapaz e inferior; o indígena é bestial e incivilizado; a matança e aniquilamento das populações mesoamericanas é a conquista grandiosa dos homens brancos; a exploração das capacidades reprodutivas da mulher é a naturalização da maternidade como obrigação nossa; a escravização negra é reles dado constituinte inerente ao grandioso encontro de "raças" propiciador da construção da "rica" cultura das Américas. Assim, nunca somos nós, mulheres, negros, indígenas, crianças, que nos dizemos a nós mesmos, que dizemos o que somos, como somos, porque somos o que somos e como chegamos a ser o que somos, ou seja, como nossa realidade nos foi imposta para que chegássemos a ser isso que o dominador diz ser o que  nós somos.

O homem branco deu a si mesmo o poder de definir e nomear o mundo, e, conforme sua conveniência, define e nomeia a si mesmo como centro dele, justamente por ter o poder e o controle para nomeá-lo e, ao defini-lo e nomeá-lo, através de suas narrativas, discursos e categorizações machobrancocentradas, ele cria narrativas e discursos para fazer parecer que a forma como ele nomeia e define os outros é natural, verdadeira, é. Assim, ele constrói, do seu lugar de privilégio discursivo, sua narrativa todinha costurada pra fazer parecer que as coisas que ele nomeia e define a partir de si mesmo e de sua percepção superior sobre si mesmo sempre foram assim, que elas são assim naturalmente, que ele apenas observa e diz sobre elas o que elas são - a [pretensa] "neutralidade" e "objetividade" da Ciência é uma das mais eficazes estratégias do homem branco pra naturalizar suas nomeações e definições sobre os outros - não podendo elas serem outra coisa do que aquilo que ele definiu e nomeou a partir de sua observação como natural.

O homem branco diz tudo e sobre tudo. E, ao dizer, ele cria a realidade, pois cria sentido para o real. E, ao criar sentido para o real, ele realiza o real como real, dizendo sobre o real o que ele faz crer que o real é: aquilo que ele diz sobre. Dessa forma, todo o real nomeado e dito pelo homem branco passa a ser real e, desta forma, todos nós que somos ditos e nomeados pelo homem branco passamos a ser real dentro da perspectiva em que somos ditos e nomeados como real. Assim vamos sendo privados de ser outra coisa que não essa realidade dita e naturalizada como real pelo homem. E, privados da possibilidade de encontrar caminhos e instrumentos para dizer nós mesmos o que nós somos e sobre a realidade que vivemos, vamos sendo e vivendo o que o homem branco diz e nomeia sobre nós.

Quando nos organizamos - mulheres, negros, indígenas etc - em espaços e grupos exclusivos de protagonismo sobre nossas lutas e nossa realidade, estamos, primeiro, comunicando, deliberada ou não deliberadamente, ao homem branco que, pelo menos em um lugar não vamos mais permitir que ele diga o que somos e que ele diga sobre a realidade que vivemos. Quando nos organizamos, estamos comunicando ao homem branco que há um lugar, um único lugar no mundo, onde a produção de sentido que ele doa ao mundo não faz sentido, ou seja, não é relevante e não produz sentido sobre nós e nossas realidades. Nesses espaços, estamos recriando nossas memórias coletivas, nossas tradições, nossos saberes ancestrais, nossa cultura, nossa identidade, a partir de nós mesmos, do somos e do que experimentamos como realidade, e não do que o homem branco diz sobre nós.

Isso é muito, muito, muito perigoso. Porque tira o homem branco do centro da produção de sentido para o mundo e para a realidade. Isso é muito perigoso porque rouba do homem branco a exclusividade e a hegemonia de poder dizer o que as coisas são. Isso é muito perigoso porque permite aos grupos dominados compreenderem-se a partir da própria perspectiva e dizerem ao homem branco: "Não, nós não somos isso que você diz que nós somos" e "Não, a nossa realidade não é essa que você diz que vivemos e cujas condições você aponta". E quando se faz e se diz essas coisas, nós estamos ameaçando o lugar de privilégio e poder do homem branco, porque nós estamos dizendo a ele que já entendemos o que ele faz conosco e que estratégias ele usa pra fazer, nós estamos dizendo a ele, principalmente, que já sabemos que somos definidos, limitados e reduzidos em nossas condições pelas definições que ele faz de nós para poder nos dominar, e que nós não vamos mais permitir isso. E quando dizemos que não vamos mais permitir isso, estamos dizendo a ele que, a partir desse ponto, quem nos nomeia e define a nós e às nossas experiências, passadas e presentes, somos nós e que, portanto, quem vai construir nosso presente e nosso futuro também somos nós. E ninguém que conhece seu passado a partir de sua própria vivência e não do que o outro nos diz sobre ele e que se propõe a construir seu futuro a partir disso se permite ser dominado com a mesma facilidade daquele que se deixa nomear, a si e a sua realidade, pelo outro.

Mas isso o homem branco não pode permitir. Porque isso significa o fim de sua supremacia. Permitir que outros grupos digam e nomeiem a si mesmos, a seu passado, as suas histórias e vivências, permitir que deem sentido a realidade a partir de suas próprias vivências, e não que permitam que suas vivências sejam significadas a partir das definições de realidade de seu dominador, isso é o fim da supremacia discursiva machobranca, porque as multiplas narrativas a partir dos multiplos lugares de fala protagonizados por multiplos sujeitos de suas histórias implica no fim da hegemonia da produção de sentido pelo macho branco eurocentrado.

Portanto, não é à toa que o macho branco precisa invadir esses espaços exclusivos de protagonismo e produção de sentido contra-hegemônicos. O macho branco não pode abrir mão da hegemonia na produção de sentido para a realidade sob pena de ver a si e a sua supremacia reduzidas a um pastiche, a uma piada, e a sua história gloriosa a uma nojenta e sangrenta narrativa de violência, horror e aniquilação. Por toda história das lutas politicas contra a dominação, o macho branco tentou encontrar formas de invadir esses espaços e colonizar os discursos e produções de sentido fomentados neles. No entanto, enquanto espaços organizados contra o macho branco, em algum nível, essa resistência ao macho branco permaneceu e venceu, tanto que estamos, hoje, existindo e resistindo até aqui.

Mas o macho branco não pode, a sua supremacia não admite, não ser o centro de produção de todas as narrativas e de sentido para o mundo. Isso significa o seu próprio fim. Ele não suporta não ser o centro de tudo, ele não suporta que todas as coisas do mundo não seja definidas a partir dele, ele não suporta não ser o doador de sentido para tudo e para todos. E, então, através da teoria queer, ele "transiciona". O macho branco privilegiado e dominante, que dizia e nomeava a tudo e a todos, privado progressivamente de dizer e nomear a tudo e a todos, obrigado a aceitar que não é o referencial para produção de sentido pra tudo, que nem tudo diz respeito a ele, que nem todos estão se curvando de joelhos sob ele, mas que estamos, nós, a partir de nós mesmos, contando nossas histórias, construindo nossas memórias, reelaborando nossas tradições, e que nelas ele não é a suprema, sábia e grandiosa figura central que acredita ser, mas uma criatura nojenta, perversa, aniquiladora - um dominador explorador -, ele não pode com isso, ele não pode permitir isso, ele não pode permitir a essas pessoas, a esses grupos de pessoas, que elas digam de si a partir de si mesmas e, principalmente, que elas digam a partir de si mesmas o que ele é. Isso não pode acontecer, o homem branco não pode permitir isso, ele não pode ser privado de estar nesses lugares, ele precisa vetar essa produção livre e legitima de sentido para o mundo. E, aí, o liberalismo e sua ideologia de sacralização do individuo e de exaltação da vontade individual como valor supremo da humanidade cria, através da teoria queer, o discurso das identidade fluídas, das transidentidades, da autoidentificação: o dominador pode ser o que ele quiser e, portanto, pode estar onde ele quiser, onde antes lhe era vetada a existência política e social. Assim, o dominador assume a identidade do dominado - legitimado pela ideologia liberal de que a vontade individual está cima de todos os valores e direitos e não pode ser negada ao sujeito - ele "transiciona" pro lugar social que antes lhe era vetado como ilegitimo e passa a ter  legitimidade pra, novamente, nomear, dizer e produzir sentido pra uma condição que ele não vivencia, não vivenciou e nunca vivenciará. Novamente, o macho branco [e seu séquito machobrancocentrado] está produzindo sentido para o mundo e nomeando e dizendo sobre pessoas e grupos sociais o que eles são. E, assim, eles serão, a partir da experiência do machobranco e não mais da própria. E, assim, o macho branco silencia e aniquila, controlando com sua produção de sentido machobrancocentrada, toda produção de sentido diversa a que ele confere ao mundo.

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