quinta-feira, 14 de novembro de 2019

UM BLÁ COM BEAUVOIR

Existe uma experiência milenar, histórica, que perpassa épocas e culturas diferentes, e que é imposta exclusivamente a um grupo específico de pessoas, as nascidas no sexo feminino: a MISOGINIA.

A misoginia não é o ódio às saias, vestidos, saltos altos, maquiagens e nem a nenhum desses adereços e esterótipos que homens autoidenficados como mulheres optam por usar ou reproduzem pra afirmar sua identidade feminina. A misoginia é o ódio ao corpo das mulheres, a nossa genitália, a nosso aparelho reprodutor, ao SEXO FEMININO e tudo que é próprio dele e de seu desenvolvimento: útero, ovários, vagina, vulva, menstruação, secreções, hormônios, caracteristicas físicas, gravidez, maternidade, aleitamento. É com base na misoginia que fêmeas humanas são tornadas mulheres. "Mulher" é, ao mesmo tempo, o produto social da misoginia e, em cada corpo e subjetividade feminina, a tensão permanente entre a misoginia e a luta individual e coletiva pra se libertar dela.

Seja aqui, no Rio de Janeiro, no Brasil, em Pequim, Nova Delhi, Portugal, Maputo, Egito, Canadá, ou ali em Bangu, em qualquer lugar onde a sociedade estiver estruturada sobre a hierarquia SEXUAL do patriarcado (Patri = pai/homem e arch = hierarquia), ou seja, a hierarquia do SEXO masculino na posição superior e o sexo feminino na posição inferior, haverá a misoginia e "mulher" será sempre o produto social da ação real e material da hierarquia sexual sobre os corpos e subjetividades da fêmea humana. Independente das variações regionais e temporais das expressões da misoginia, que torna singulares a vivência de grupos e indivíduas mulheres de acordo com a época ou região em que nasceram e viveram, a misoginia é uma experiência compartilhadas por TODAS as mulheres. A misoginia é a força limitante e conformadora contra qual TODAS as mulheres resistem. A misoginia se desdobra sobre nossos corpos, nossas emoções, nossos afetos, nossos desejos eróticos, nossaq psiquê, nossa forma de conceber a nós mesmas, o outro e o mundo. As expressões da misognia mudam em cada época e cada lugar, mas a misoginia permanece forjando a condição feminina na história, no tempo, na dor, na vida e na morte, na resistência e na luta. As expressões da misoginia variam de acordo com a região, a cultura, o tempo histórico, mas a misoginia permanece massacrando os corpos e o sexo feminino, desde a infância até a velhice, pra nos desumanizar e nos transformar em mulheres - o subproduto da humanidade (do homem), o segundo sexo, o objeto do sujeito masculino. As expressões da misoginia são diversas, tantas quantas são as culturas humanas, mas o fundamento da misoginia permamence: o controle, domínio e domesticação do corpos femininos para a exploração do nosso SEXO, das capacidades reprodutivas das mulheres, a principal forma mantenedora de QUALQUER sistema de exploração: a capacidade de gerar novos senhores e novos escravos. As expressões da misoginia são diversas, tantas quantas são as culturas humanas e as épocas históricas, mas o fundamento da misoginia permanece: dele se desdobra a antiga tradição chinesa de mutilação dos pés das mulheres nos micro-sapatinhos, considerada um padrão de beleza, mas que, na verdade, impedia as mulheres de andar, correr, saltar e escapar de seus maridos agressores; a compra e venda de mulheres, através de dotes, pelo casamento, comum na Idade Média europeia e, ainda hoje, em algumas sociedades rigidamente patriarcais; a proibição do aborto pelo controle do Estado patriarcal sobre os corpos das mulheres e a violência da maternidade compulsória e das milhares de mortes femininas que disso decorrem; a mutilação genital de meninas e mulheres em alguns países de regiões que conhecemos como Oriente; a pedofilia, a exploração sexual de meninas e o casamento infantil, que leva meninas a servirem doméstica e sexualmente a homens velhos, a terem sues corpos e subjetividades tolhidos pela violência extrema contra as suas infâncias - situação em que o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial; a Divisão Sexual do Trabalho, que ordena a economia(*) patriarcal e capitalista, sustentando esses sistemas; os padrões estéticos e comportamentais, que tornam mulheres infantilizadas, incapazes, frágeis, objetificadas para servir ao erotismo masculino e alimentar a ideia geral do que é ser uma mulher e de qual seu papel na sociedade; o lesbo-ódio, que impede o sexo feminino de amar suas iguais e as impele, seja por violências materiais ou subjetivas, ao culto ao falo e à falocracia, à heterossexualidade compulsória; a prostituição, fundamentalmente feminina, que mantém a degradação da condição feminina por meio da ideia de que somos objetificáveis e mantém o exército de reserva de mulheres degradas e miseráveis, fundamental para a regulação da economia patriarcal; a pornografia, propaganda masculinista heterossexual, e seu sentido pedagógico patriarcal para a educação de novos patriarcas e novas submissas; 
os estupros, espancamentos, encarceramentos, a violência obstétrica... enfim, em todo mundo, por todas as épocas, as sociedades patriarcais se fundam na misoginia: essa experiência, ao mesmo tempo única e diversa, COMPARTILHADA por TODAS as seres humanas nascidas sob o signo do sexo feminino, e que nos faz MULHERES.

Nenhuma, eu disse NENHUMA, pessoa nascida no sexo masculino JAMAIS vai vivenciar a experiência compartilhada de ser mulher, de nascer, viver e ser corformada pela misoginia e resistir e lutar contra ela. Ser uma pessoa do sexo masculino que acredita que é uma mulher e quer convencer a todos que é uma mulher como outra qualquer e que, por isso, pode definir o que é ser mulher e pode ocupar os espaços conquistados pelas mulheres não é "uma forma diferente, entre tantas, de ser mulher", é apropriação, é colonização, é apagamento, é violência, é só mais a mesma misoginia masculina de sempre.

Nenhum feminismo "reduz" mulheres a seus úteros ou vaginas, quem faz isso é o patriarcado, através da misoginia, porque precisa, justamente, nos reduzir e nos desumanizar, pra manter o controle sobre nossos corpos e subjetividades e manter a coletividade das mulheres domesticadas e submissas diante do domínio masculino e da exploração das nossas capacidades reprodutivas. Nenhum feminismo é "biologizante" e reduz mulheres ao sexo, mas um feminismo que ignora ou nega que a condição e a definição do que é ser mulher passa obrigatória e fundamentalmente pela misoginia, pela experiência compartilhada de nascer num corpo feminino numa sociedade que odeia o sexo feminino, e que permite ao sexo masculino, que nunca experimentou e nunca irá experimentar a violência misógina sobre seu corpo e sua subjetividade, definir o que é ser mulher e o que é a condição feminina, é um feminismo que já foi atravessado pela lógica masculina, é um feminismo colonizado pelo sexo masculino, pelo falocentrismo, um movimento que serve à falocracia e ao patriarcado. É um movimento ANTI-MULHER.

Ainda, um adendo importante: antes de existir o feminismo, já existia a luta de mulheres por emancipação da hierarquia sexual que ordena e produz a economia patriarcal, e as primeiras formas de resistência feminina contra o patriarcado foram LÉSBICAS. Antes de existir o feminismo já existia a luta de mulheres e, há milênios, antes de existir o feminismo, o sexo masculino cria estratégias violentas, diretas ou veladas, morais ou materiais, simbólicas ou reais, linguísticas, discursivas, subjetivas ou objetivas, para colonizar, pulverizar e minar a resistência das mulheres pela emancipação do sexo feminino e contra a hierarquia sexual. E, cedo ou tarde, se pode perceber que a maioria dessas estratégias consiste, fundamentalmente, num ataque violento à classe de mulheres que representam a maior força e o maior perigo contra o patriarcado: as lésbicas. É preciso entender que, dentro de um contexto patriarcal, mulheres que amam mulheres não diz respeito somente aos sentimentos individualizados e emoções subjetivas, mas tem um sentido mais amplo e político: as lésbicas são aquelas que AMAM O SEXO FEMININO, nas sociedades em que o sexo feminino deve ser odiado, e PRESCINDEM DO SEXO MASCULINO, quando ele deveria ser idolatrado e referendado. Lésbica é a condição mais profunda de recusa à misoginia e ao falocentrismo que mantém a base do sistema patriarcal. Lésbica é a condição mais profunda de recusa ao falocentrismo dda subjetividade, dos afetos e desejos a que são submetidas as mulheres pelo sujeito do falo em sua profunda colonização. O falocentrismo e a misoginia são as condições mais fundamentais para forjar a subjetividade das mulheres, funcionam como força motriz da manutenção da hierarquia sexual. Observem, portanto, que, primeiro, o sexo masculino autoidenficado como mulher reivindicou ressignificar a definição e a condição feminina - mesmo sem nunca tê-la experimentado - nos fazendo distrair, ignorar ou negar o que define de fato a condição feminina no patriarcado e redefinindo a condição feminina a partir de outros termos: uma experiência totalmente dissociada da misoginia e com centralidade do falo, no sexo masculino, que, agora, se reivindica como mulher capaz de definir a mulher a partir de seu próprio sexo. Agora, o sexo masculino quer definir e ressignificar, também, a condição lésbica.

Mulheres, atentem e resistam.

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(*)Eu uso economia não no sentido estrito da palavra, que indica uma disciplina ou área do conhecimento que produz significados pras atividades ligadas ao mercado e ao dinheiro, mas seu sentido mais amplo: o conjunto de atividades humanas que, agindo de maneira integrada, geram e mantém o funcionamento de um sistema.



domingo, 11 de março de 2018

PROSTITUIÇÃO É ESTUPRO

Se você não consegue enxergar o quão desumanizante a prostituição é, se você não consegue conceber que ela é algo tão violento e violante para a condição feminina, a tal ponto que a existência da ideia de que homens têm o direito de comprar o sexo feminino não deveria sequer ser concebida, se você não consegue enxergar isso e acha que pode haver algo empoderador ou ou libertador na prostituição, no direito de homens comprarem o sexo feminino, se você defende que a prostituição poder ser empoderadora ou libertadora das mulheres, você ainda não entendeu que mulheres são seres humanas, que mulheres são HUMANAS. Você ainda não realizou isso na sua cabeça, na sua cognição, no seu pensamento e na sua linguagem, você acha que mulher é coisa, é objeto, é um troço que existe pra servir a homens, bastando que eles comprem seu consentimento - quando consentimento não pode ser comprado, e quando isso acontece isso se chama ESTUPRO.

E isso é ainda mais desesperador quando você, que defende que pode haver alguma liberdade na ideia de que existe alguma circunstância especial e libertadora para mulheres na ideia de que homens têm direito comprar nossos sexos, é ainda mais desesperador quando você pensa isso e também é uma mulher.

As relações entre homens e mulheres nunca serão "normais", porque são fundadas na desigualdade, qualquer relação entre homens e mulheres no patriarcado parte desse lugar social da desigualdade, ela é fruto de uma sociedade sexualmente hierarquizada, que concebe homens numa posição superior a das mulheres, em que homens são humanos e mulheres são um subproduto da humanidade masculina. A prostituição só pode existir e ser concebida a partir dessa hierarquia, criada por homens, e que estabelece a supremacia do sexo masculino sobre o feminino - nenhuma outra sociedade, a não ser a patriarcal, conceberia que podem haver circunstâncias especiais em que é digna a ideia de um ser humano do sexo masculino comprar o corpo e o sexo de outros seres humanos. Logo, a naturalização da ideia de que haverão circunstâncias especiais que legitimam a prostituição (como a de que é possível que mulheres é que "decidam" ou "escolham" em que circunstâncias a prostituição é libertadora ou não ou que elas é que decidem "se sentem" empoderadas ou não pela prostituição) é uma ideia patriarcal, baseada na noção individualista e liberal que coloca as percepções individuais acima dos significados coletivos dos processos históricos que estruturam a economia e funcionamento da sociedade patriarcal-liberal. A ideia de que pode haver alguma circunstância em que homens terão direitos a nossos corpos é uma ideia totalmente patriarcal.


Mulheres são frequentemente apontadas como "interesseiras" ou "aproveitadoras" quando, ao reproduzirem seu papel sócio-sexual de inferior, dependente, subjugada e explorada pelo sexo masculino, em alguns aspectos dessas relações desiguais, em sua luta pra sobreviver à exploração e ao subjugo, elas aparentemente tiram dessas relações algum "proveito" material ou simbólico.

Mas a verdade é que nenhum proveito ou benefício há, para mulher, em relações fundadas na desigualdade. E, portanto, não há nelas nenhuma liberdade ou empoderamento. A prostituição/estupro é o fundamento dessas relações desiguais entre homens e mulheres, e o fundamento da prostituição/estupro reside no fato de que, historicamente, a dominação do sexo masculino sobre o feminino se deu, originalmente, quando os homens expropriaram das mulheres os seus meios de sobrevivência (não somente os instrumentos de cultivo da terra, de colheita, de trabalho, mas, também, seu corpo, seu sexo, sexualidade e capacidades reprodutivas)  subjugando o sexo feminino e convertendo fêmeas humanas em mulheres ao convencê-las que, por serem inferiores aos homens, deviam a eles temor e subserviência, pois que, expropriadas de meios de subsistir, encarceradas no espaço doméstico e reduzidas a incubadeiras dos herdeiros do macho, sua subjetividade, autoimagem, autocompreensão sobre si e sobre o que é ser mulher, é forjada na sua própria servidão, inferiorização e dependência em relação ao sexo masculino. 

Junto com o sequestro de seus meios de subsistência, toda humanidade da mulher também é sequestrada pelo sexo masculino, agente e sujeito do processo de limitação, redução e exploração da fêmea humana.

Nesse processo de expropriação, de desumanização, de empobrecimento, o corpo e o sexo feminino são convertidos, pelo homem, em moeda. Isso acontece para que, expropriadas, subjugadas, desumanizadas, empobrecidas, as mulheres temam constantemente o medo do estupro e cedam ao casamento (o contrato social de promessa que os homens fazem de nos proteger da violência que eles mesmos perpetram contra nós e de nos prover da pobreza que eles mesmos nos causam). Às mulheres que se recusam ao casamento (lésbicas, rebeldes, insubordinadas), a proteção dos homens por meio do casamento é vetada: como mulheres passíveis de terem seus corpos acessados por todos os homens (já que abriram mão de ser propriedade de um único), resta a violência absoluta, o espancamento, a miséria e a morte, ou a aceitação da seguinte oferta: seus corpos disponíveis para todos os homens mediante a um simbólico pagamento, ou seja: a aceitação da conversão de seus corpos e sexo à mercantilização negociável entre todos os homens. Isso se chama estupro, esse é o fundamento mais enraizado da prostituição. Essa é a dimensão social e histórica do estupro, da prostituição, é o lugar de sua gênese. Essa dinâmica é o fundamento da prostituição, que serve, portanto, ao mesmo tempo, como instrumento de controle social das mulheres prostituídas por todos, visto que sua subsistência continua subordinada aos homens, que negam-lhe trabalho, terras e acesso à produção ao mesmo tempo que (não interessando aos homens a morte delas) convertem seus corpos em mercadoria, condicionando a subsistência delas a submissão ao estupro mediante pagamento, e das mulheres que serão exploradas e dominadas pela heterossexualidade e pelo casamento pelo temor histórico e visceral da violência delegada às que se insubordinam. O pagamento pelo estupro, que não as deixa um determinado contingente de mulheres prostituídas morrer de fome, existe para que permaneçam vivas e sirvam de exemplo, em toda sua miséria, servidão sexual e vitimização, a todas as mulheres, para que todas as mulheres não se rebelem contra o casamento, a servidão doméstica, à maternidade compulsória, à heterossexualidade, contra o contrato que as converte em propriedade de um único homem, pra mostrar a elas que a alternativa a isso pode ser ainda muito pior. 

Esse é o fundamento da prostituição: expropriada e destituída por homens de qualquer forma de sobreviver, recusando (ou impedidas de acessar) o casamento como forma de receber proteção e proveção masculina contra a violência e a miséria que eles mesmos causam às mulheres, seu sexo é convertido por homens em mercadoria para que ela continue no subjugo masculino e ainda sirva de exemplo a outras mulheres.

E como não podia deixar de ser, todo esse processo de origem das relações de prostituição precisa ser apagado, o verdadeiro sentido da prostituição vai sendo apagado pela História escrita pelos homens, pela Arte e pela Literatura produzida pelos homens, pela Filosofia, Sociologia e por Teorias produzidas por homens... durante toda história das sociedades patriarcais, os homens, em suas práticas e discursos, emprenham-se para dar outros significados pra prostituição, para que seu significado mais fundamental e mais verdadeiro seja esquecido, seja apagado. Mas esse significado ressurge, vez ou outra, na história, pelos discursos de mulheres, pelas memórias das mulheres, pelas falas e vivências das mulheres, esse significado ressurge porque é real, porque ele é fruto da violência e da dominância masculina, que os próprios homens não conseguem esconder. Por isso, mesmo com todos discursos falseados sobre a prostituição pra esconder seu verdadeiro caráter, seu sentido mais fundamental, os homens não conseguem esconder totalmente seu verdadeiro significado, porque ele reside e nasce e renasce na própria violência masculina, real e iminente em toda sociedade patriarcal: prostituição é a DEGRADAÇÃO das mulheres pelos homens. 

Não se enganem: esse é o verdadeiro sentido da prostituição. Num sistema patriarcal em que mulheres são forjadas como gênero (o gênero não é natural, o gênero é a própria desigualdade) a partir da expropriação de seus meios de subsistência e que, portanto, não são sujeitas de si, de suas histórias, narrativas e direitos, a prostituição é muito menos sobre o "direito" de mulheres venderem seus corpos e muito mais sobre o direito dos homens de comprá-los. E os homens farão de tudo para que não enxerguemos isso, para que a gente não se dê conta disso, eles irão, inclusive, tentar nos convencer que o direito que eles estabeleceram sobre nossos corpos seria, na verdade, uma liberdade pra nós - e buscarão aliadas entre nós pra defender esse direito e nos mostrar que eles estão certos. Não caiam nessa.

A JUSTIÇA FALOCRÁTICA

A justiça patriarcal é feita pra humilhar e punir qualquer mulher que ouse levantar a voz contra as agressões masculinas. Pra violar reiteradamente qualquer mulher que ouse sair do lugar de sujeição e silêncio que o patriarcado nos reserva.

A justiça patriarcal é, ao mesmo tempo, uma realidade e uma metáfora; uma realidade perversa que humilha e agride a mulher e uma metáfora de estupro. Um estupro simbólico pra mostrar a algumas mulheres que elas foram longe demais, que elas precisam recuar, pra colocá-las novamente de joelhos frente a seus agressores cada vez que elas ousam se erguer, pra colocá-las novamente de joelhos e obrigá-las a se retratarem, a se desculparem, por narrarem as violências que sofrem, por romperem com o silêncio que historicamente nos tem sido imposto. É um estupro simbólico, que viola a mulher em sua dignidade, em sua moral, em seus valores mais íntimos, em sua existência, é um estupro corretivo pra nos mostrar que fomos longe demais ao tornar pública uma agressão de um homem contra uma mulher, porque essas agressões devem permanecer nas esferas privadas, das relações intimas ou do silêncio e do medo, porque é direito do homem agredir uma mulher e é direito dele ser poupado e protegido da reação dela. E se a mulher viola um direito do homem ela vai ser humilhada e punida.

Qualquer mulher que ouse não se calar diante da violência de um homem será humilhada e punida, pra que entenda que deve recuar e pra servir de exemplo para outras.

É isso que acontece nas salas trancadas dos tribunais patriarcais, nos chamados Tribunais de Justiça.

A espada está erguida. A justiça é concebida pelo e para o falo.


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

FEMINILIDADE NÃO É PERFORMANCE II

Observatório do buzão.
(Reflexões no transporte coletivo a caminho do trabalho)

Imaginem um homem chegar numa entrevista de emprego ou em seu primeiro dia de trabalho numa empresa com roupas bem justas que mostrassem bem a forma do seu corpo, inclusive a delineação de seu órgão sexual, peitoral e até mamilos, com a cara toda pintada, lábios, olhos e maçãs do rosto, de forma a simular um constante estado de excitação e disponibilidade sexual ou, ainda, olhos e cílios artificialmente aumentados, gestos e empostação vocal débeis, simulando uma vulnerabilidade infantil, roupas de babadinhos, de coraçõezinhos, bichinhos, imitando a indumentária de uma criança, agora ceis imaginem se esse macho ia ser respeitado ou credibilizado por sua competência profissional?

Das mulheres é esperado que, além de alguma competência no trabalho (isso não é o requisito principal pra conseguir o emprego) elas sinalizem aos homens que estão vulneráveis e sexualmente disponíveis, ou seja, que são prostituíveis, que sua prostituição está inclusa nas relações de trabalho. Elas precisam informar aos homens que dominam o mercado de trabalho que, mais do que ter competência profissional, que elas aceitam essa condição. Se não aceitar, você pode ter a melhor formação do mundo, você não tá empregada - vide lésbicas que não se conformam aos padrões estéticos de feminilidade e não conseguem empregos.

Feminilidade não é sobre sentimentos masculino acerca de batons, maquiagens e vestidos. Feminilidade não é sobre como alguns homens se sentem bem e realizados quando experimentam adereços e rituais criados para controlar, manipular, subjugar e explorar os corpos e subjetividades do sexo feminino. Feminilidade é sobre a hierarquia sexual que ordena a sociedade, é sobre a servidão do sexo feminino ao sexo masculino. Isso é ser mulher.


FEMINILIDADE NÃO É PERFORMANCE

Feminilidade é uma violência tão fundamental, tão fortemente introjetada na gente, impressa na carne e na subjetividade das fêmeas humanas, do sexo feminino, que sequer conseguimos conceber a nossa existência sem ela. Feminilidade não é sobre vestidos, sapatos, gestuais, maquiagem, feminilidade é sobre submissão, é sobre a profunda domesticação do sexo feminino - os estereótipos de gênero são só o nível mais aparente da feminilização. Feminilidade sobre um nível tão profundo, tão estrutural, tão fundamental, de submissão que faz mulheres erotizarem e desejarem a sujeição ao macho, que faz mulheres engravidarem compulsoriamente tentando (em vão) seu reconhecimento de humanidade, que faz a mais caminhoneira das lésbicas desejar aprovação e reconhecimento de homens e da sociedade patriarcal. Parem de usar a linguagem do opressor e ajudar a esvaziar o sentido do conceito e da prática violenta de feminilização de seres humanas do sexo feminino.

Não existem mulheres que "performam" e mulheres que "não performam" feminilidade, numa sociedade patriarcal TODAS as mulheres são atingidas pela feminilização em algum nível, porque feminilidade não é performance, feminilidade é violência conformadora de mulheres. Feminilidade é sobre a sujeição do sexo feminino ao sexo masculino. 

FEMINILIDADADE NÃO É PERFORMANCE, É VIOLÊNCIA CONTRA O SEXO FEMININO!


quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

"TODO HOMEM É UM ESTUPRADOR" NÃO É UMA GENERALIZAÇÃO QUE COMPORTA EXCEÇÕES,

MAS É, SIM, UMA VERDADE DENTRO DA CULTURA PATRIARCAL.

Quando algumas feministas afirmam que TODO HOMEM é um estuprador, essa sentença percorre, no geral, três caminhos interpretativos dentro do próprio feminismo (e da sociedade):

1. Há aquelas mulheres que, com o pavor imposto pela socialização feminina de não receberem o reconhecimento e a garantia de humanidade prometida pelos homens às mulheres de "bom comportamento" e às "boas" feministas, e reproduzindo piamente o típico discurso desesperado de homens quando são descobertos fazendo suas perversidades, elas se indignam junto com eles com o "absurdo" de fazer uma "generalização" dessas, porque "nem todo homem" e "não precisa generalizar", e rechaçam completamente qualquer possibilidade de se refletir a partir dessa sentença e compreender seu significado dentro da patriarcado. Não há possibilidade de diálogo e nem de produção de saberes e conhecimentos feministas com essas mulheres sobre esse assunto, elas não cederão à possibilidade de desagradar à lógica masculina.

2. Há aquelas que, não temendo desagradar à maioria dos homens, mas, também, não querendo desagradar a todos eles e romper definitivamente com toda e qualquer possibilidade de aprovação masculina, esperando, ainda, o reconhecimento e a aprovação de um grupo seleto de homens, os entendidos por elas como mais "desconstruídos", os "de esquerda" ou, simplesmente, os "caras legais", essas entendem a necessidade da generalização da sentença, dentro de um contexto estrutural que coloca homens enquanto classe/grupo/casta e generaliza a partir deste lugar, embora possa caber nele também o que elas e os tais machos desconstruídos/esquerda/legais - por ser justamente o que eles reivindicam para si mesmos - chamam de "exceção", ou seja, homens que não cabem na generalização porque nunca estupraram uma mulher, mas que são irrelevantes dentro de uma análise estrutural porque, obviamente, esta se falando de uma "estrutura", do "geral" e não das tais exceções. Há possibilidade de construção de diálogo e de conhecimento com essas mulheres, mas ela é limitada, geralmente ela estagna quando uma das premissas mais fundamentais do feminismo - "O pessoal é político" - vem à tona e o assunto se desdobra sobre suas vidas pessoais, suas experiências, suas histórias e sobre os homens de seu afeto.

3. Há aquelas que caminham de maneira geralmente consciente e deliberada (sabendo de toda a dificuldade e limitações inerentes a esse processo, mas dispostas a encará-las e construir, dentro do possível, suas vidas pautadas nisso) para a ruptura com toda e qualquer necessidade de aprovação e reconhecimento de todo e qualquer macho e sentenciam que não há nenhuma exceção na generalização e que homens são, sim, todos estupradores - NÃO HÁ EXCEÇÕES. Essas mulheres, no geral, são as feministas lésbicas, e há um extenso e profundo diálogo entre elas sobre essa sentença e suas implicações na história e na vida das mulheres e em toda história e prática das sociedades patriarcais. Não há limites para a produção de compreensões sobre o quão perversa pode ser a lógica patriarcal, o falocentrismo e a cultura e a prática política, social, parental, afetiva e erótica hierarquizada do sexo masculino sobre o sexo feminino.

Geralmente, os homens - e muitas mulheres heterossexuais também - odeiam muito essas mulheres (as lésbicas) e se recusam dar a aprovação e reconhecimento masculinos aos seus pensamentos, reflexões, falas, suas teorias e narrativas, suas subjetividades e criações artísticas, a seus feminismos e, até mesmo, as suas existências, como válidas, humanas ou coerentes e dignas de serem ouvidas, compreendidas, ecoadas. Por isso, lésbicas e, mais recentemente dentro da História, as lésbicas feministas, são as mais perseguidas, silenciadas, apagadas; por isso, dentro da História, da Literatura, da Ciência, dentro do próprio feminismo, enfim, dos registros humanos que narram e dão significados ao mundo, as memórias, as produções, as narrativas, compreensões, teorias e registros de lésbicas sobre sua própria condição e sobre seu modo de compreender o mundo e as sociedades patriarcais são escarnecidos, vilipendiados, amaldiçoados e aniquilados. E por isso, também, em tese, seria muito difícil pra uma mulher heterossexual mover seu pensamento, sua compreensão e até mesmo sua prática erótica e afetiva até esse ponto, até o ponto de compreender e aceitar profunda, radical e verdadeiramente que todos os homens são estupradores e, mesmo assim, conseguir continuar se relacionando afetiva e eroticamente com eles. É muito difícil e doloroso esse processo, sobretudo porque a gente, individualmente, está envolvida nele e constituída por ele: a vida toda, faz parte de quem a gente é, ser vítima dos estupros e dos estupradores que amamos - e reconhecer e aceitar isso radicalmente significa uma dor e um desterro imensos, causados por uma ruptura sem igual, muito profunda e radical, com o mundo, com o passado, com que somos, ou, mais precisamente, com quem fomos até aí.

Dito isso, retomando o tema central desse texto, o da possibilidade de se duvidar de que todos os homens sejam mesmo estupradores ou se haveriam as exceções* eu deixo uma pergunta então: levando em consideração que estupro é qualquer forma de coação, física, moral, psicológica, patrimonial, material, simbólica, subjetiva, com uso de força física ou não, que um homem aplique contra uma mulher para obter o coito, vocês conhecem algum homem na face da Terra que nunca tenha forçado coito com uma mulher embriagada, entorpecida ou adormecida; coagido namoradas jovens e inexperientes ou emocionalmente e psicologicamente adoecidas ou dependentes ao coito por meio de chantagem ou manipulação com promessas de bens materiais ou cobranças de ordem moral, afetiva ou emocional até conseguir obter o coito; que tenha ignorado um "não", uma aparente indisposição ou falta de interesse da mulher na relação sexual e seguido o coito sozinho no corpo da mulher sem, entretanto, a participação ativa e o consentimento efetivo dela; oferecido dinheiro a uma ou várias mulheres prostituídas pra obter o coito; se aproveitado à força, agarrando, sarrando, tocando uma mulher sem seu consentimento tentando obter o coito ou prazer sexual do corpo dela? Você conhece algum homem que NUNCA tenha tido NENHUMA dessas atitudes sequer? Porque se ele teve ao menos UMA dessas atitudes, uma única delas, ele É UM ESTUPRADOR. E se ele se preparou pra fazer, tentou fazer, começou a fazer e não logrou êxito, porque foi impedido por circunstâncias externas quaisquer, seja por agentes da lei, por outra pessoa ou pela própria mulher, ele também É UM ESTUPRADOR.

E ter se transformado num cara de esquerda desconstruído, ou num bom samaritano qualquer, e ter se arrependido de ter feito não faz o cara deixar de ser um estuprador - só faz o cara tentar convencer os outros que não fará mais (o que também é duvidável, porque a ideia de que mulheres devem o coito a homens é tão naturalizada por eles que eles vão exercitá-la por toda a vida, naturalmente, como se fosse um impulso natural esperar isso delas, eles vão fazer isso, seja com violência mais direta, seja de maneira mais subjetivas.

Por isso, eu digo, sem pestanejar: TODOS, eu disse T-O-D-O-S os homens já cometeram ou tentaram cometer alguns desses atos contra mulheres. TODOS. Nossos irmãos, tios, avós, pais, amigos, maridos, namorados. TODOS. Não há exceção.

Eu não tenho medo de dizer que TODOS os homens já estupraram alguma mulher na vida. PORQUE ISSO É A CULTURA DO ESTUPRO e todos os homens praticam a cultura do estupro, porque ela é natural pra eles.




*A justificativa da exceção serve para que possamos, nós, mulheres, sempre pensar que há um contingente de homens livre da acusação do estupro e que esses seriam, obviamente, os homens que amamos. A "exceção" é, portanto, o lugar em que as mulheres depositam suas esperanças no sexo masculino e, ainda mais: é a negação de suas próprias histórias. É a esperança da redenção de suas próprias experiências de violência com os homens, na desesperada tentativa de não se sentirem culpadas, de não sentirem o peso que o patriarcado deposita sobre nossas costas nos culpando por cada um de nossos estupros, desde o mais incisivamente violento ao mais naturalizado deles, as mulheres precisam acreditar que "nem todo homem", porque se "nem todo homem é um estuprador", nem sempre ser mulher será uma experiência forjada a partir do estupro. 

domingo, 24 de dezembro de 2017

OS HOMENS MATAM PORQUE ESTÃO DOENTES?

Os homens são violentos e matam porque estão/são doentes. Essa sentença é martelada na cabeça da gente de tantas e tão diversas formas, que eu nem sei mais o que dizer. É pela medicina, é pela psicologia, é pela sociologia, é pelo discurso jurídico, é pelo senso comum, é pela esquerda, é pela direita, é pela mídia, pela Ciência, pela minha vó e pela minha colega acadêmica, é por todo mundo. Homens são violentos e matam porque estão/são doentes, dizem outros homens e repetem as mulheres, concordando com o ponto de vista masculino (sim, esse é um ponto de vista masculino e masculinista sobre a saúde e a doença e sobre a violência masculina). E repetem à exaustão porque é preciso continuar convencendo as mulheres disso, de que homens são violentos porque tem alguma doença (que se não foi diagnosticada, ainda vai ser), pra que elas continuem tendo compaixão por seus assassinos, agressores, espancadores, exploradores - por esses pobres coitados, doentes.

É sempre a mesma explicação. A doença de espancar e matar gente sempre tem causa neurológica, emocional ou psíquica. Qualquer que seja a doença que um homem tem, ela pode explicar sua conduta violenta - se ele não foi diagnosticado com alguma doença diagnosticável pelas autoridades médicas, atribui-se alguma doença mental/ emocional qualquer, nunca vai faltar uma patologia pra justificar a violência masculina, sabemos. Porque homens são violentos porque estão/são doentes, então, é claro, a doença é que vai explicar a violência masculina, SEMPRE.

Acontece, que homens matam, eles mantam, torturam, espancam, estupram, ateam fogo, ácido, encarceram, sequestram, mutilam, degolam, numa frequência gigante (seria uma epidemia loucamente fora de controle?). E eles fazem isso com crianças, mulheres, bichos, com outros homens. E eles fazem isso em números que configuram genocídio. E eles fazem isso quando lhes foi oficialmente diagnosticada alguma doença e eles fazem isso quando não lhes foi oficialmente diagnosticada doença nenhuma. Eles matam o tempo todo (uma pandemia!). Mas eles estão doentes, é claro. E a doença vai justificar a violência masculina, obviamente. "Matou porque estava doente", a TODO instante em que um homem agride ou mata, com ou sem diagnóstico especializado, lhe atribuem uma doença. A violência masculina é uma doença, a violência masculina precisa ser patologizada. Homens são violentos porque estão/são doentes.

Mas, vejam bem: a doença de matar gente, geralmente, ela só dá em homens.

Homens e mulheres têm doenças neurológicas degenerativas, mas quem no geral mata gente porque tem doença neurológica degenerativa? HOMENS.

Homens e mulheres têm doenças psicossomáticas resultantes de traumas e violências passadas, mas quem geralmente mata gente porque tem doença psicossomática resultante de traumas e violências passadas? HOMENS.

Homens e mulheres têm doenças neurológicas resultantes de traumas físicos no cérebro, mas quem geralmente mata porque tem doença neurológica resultante de trauma físico no cérebro? HOMENS.

Homens e mulheres tem doenças psicossomáticas e neurológicas resultantes de causas não conhecidas, mas geralmente quem mata gente porque tem doenças psicossomáticas e neurológicas resultantes de causas não conhecidas? HOMENS.

Homens e mulheres têm angústias, medos, dores, sofrimentos e desequilíbrios psíquicos e distúrbios emocionais, mas quem geralmente mata porque sente angústias, medos, dores, sofrimentos e desequilíbrios psíquicos e distúrbios emocionais? HOMENS.

Até quando homens vão continuar convencendo as mulheres que eles espancam, estupram, matam, mutilam, queimam, encarceram, degolam, numa estatística que configura GENOCÍDIO porque estão ou são doentes?

Mulheres, não caiam nessa.

Espancar, estuprar, mutilar, queimar, degolar, matar NÃO é sintoma de NENHUMA doença.

Isso mesmo: ZERO doenças têm como sintoma espancar, estuprar, mutilar, queimar, degolar, matar. (Antes que alguém mencione, não se esqueçam que psicopatia e pedofilia são "doenças" que só dão em homens, logo...)

HOMENS SÃO VIOLENTOS E MATAM PORQUE ELES CRIARAM E MANTÉM UMA CULTURA QUE PERMITE E INCENTIVA HOMENS A MATAR PARA QUE HOMENS CONTINUEM NO PODER.

Homens são violentos e matam porque serem senhores da vida e da morte é parte da simbologia e da materialidade da cultura masculina, seja entre homens acometidos por qualquer patologia ou por homens sãos - no patriarcado homens doentes e sãos estão autorizados a matar.

O Patriarcado é justamente esse lugar histórico em que os machos humanos expropriaram o poder da criação das mulheres, nos encarcerando e nos matando, a nós e a nossos filhos, e em que reelaboram a narrativa da criação, atribuindo a eles (na figura de um Deus supremo masculino e da violência material cotidiana autorizada aos homens) esse poder, o poder de vida e o poder de morte.

Homens matando no patriarcado NÃO é doença, é NORMA.