terça-feira, 21 de junho de 2016

EU, ANA PAULA, SAFO E PANDORA.



Hoje eu acordei com uma angústia danada, daquelas que permanecem o dia inteiro doendo e apertando o peito, como uma crise de ansiedade anunciada, que a gente vai contendo pra não explodir dentro da gente - que a gente vai segurando pra poder viver a vida, fazer as coisas, seguir em frente.

Acordei com lembranças (é possível que eu tenha sonhado e não lembre) de um episódio da minha adolescência, quando, lá por volta dos meus 16 anos, saí pruma baladinha com umas amigas da mesma idade. Morávamos todas no mesmo bairro, no subúrbio do Rio, num daqueles bairros pequenos, em todo mundo conhece todo mundo. Lá encontramos uns rapazes, amigos da gente, e que também estavam com seus amigos. Um dos amigos dos amigos se interessou por mim, eu não senti nenhum interesse por ele, mas diante do apelo das amigas (ele é bonito, ele faz faculdade, ele trabalha, tem dinheiro, tem carro - e todos esses símbolos de poder que somos ensinadas a valorizar em homens) e do gesto costumeiro de invalidar minha própria vontade e me obrigar a sair com homens que se interessavam por mim, mais uma vez eu não consegui dizer não, e, constrangida, desconfortável, com um sentimento que eu ainda não sabia nomear, eu fiquei com o cara. Eu simplesmente não consegui dizer não ao homem - e esse é um sentimento que só as mulheres conhecem.

Ficamos e ele sugeriu a todos que terminássemos a noite na casa dele - os pais dele estavam viajando, a casa era grande, tinha espaço e bebidas. Mais uma vez, fui convencida, eu não queria ir (no fundo, eu sabia o que isso significava), mas fui convencida, por ele e por todos, inclusive pelas minhas amigas, que estavam empolgadíssimas ficando com outros rapazes do grupo. Mais uma vez, não consegui dizer não, dizer "Não, eu não quero".

Ele morava numa casa enorme, num lugar bem ermo no bairro, ao fim de uma rua sem saída e deserta, uma casa isolada em cima de uma pedra. Meu estômago revirava, sentia um aperto no peito (como esse, com que acordei agora), uma sensação ruim, que eu mesmo não entendia e não era capaz de dar significado - afinal, eu devia estar feliz e empolgada, estava saindo com um dos caras mais bonitos, mais bem sucedidos e mais cobiçados pelas meninas do bairro, e ele me quis (não é assim que a gente, a vida toda, é ensinada?) Mas eu não estava, me sentia estranha, constrangida e desanimada.

Na casa dele, todos bebemos e conversamos, ouvimos música e, aos poucos, as outras pessoas começavam a ir embora. Minhas amigas todas tinham conseguido um par, e também foram saindo. Eu tentei ir embora com uma delas, mas, mais uma vez, não consegui obedecer minha vontade: diante da insistência da amiga (Como eu poderia ser louca de não querer ficar com aquele cara?) e do próprio cara ("Calma, fica comigo, eu não vou fazer nada que você não queira."- repetidas vezes), eu fiquei, mesmo constrangida, sem vontade, com o estômago retorcendo e com aquela angústia no peito. Eu tentava não pensar, não entender o que era aquilo que acontecia comigo: Por que eu não ia querer ficar com um cara bonito, bacana, educado, bem sucedido e com dinheiro? Por que eu não queria? Por quê? Todas as minas da minha idade queriam, por que eu não ia querer? Mas eu simplesmente atropelava meus sentimentos, sufocava eles, esses mesmos que eu não conseguia nomear, e não conseguia dizer não, e sempre cedia às investidas dos caras.





Todo mundo foi embora e eu fiquei. Deitamos numa rede na varanda, conversando e bebendo, e o cara foi ficando mais à vontade, é claro. Nessa hora, além do constrangimento e do desconforto, do estômago revirado, da angústia, eu também senti MEDO. Eu estava sozinha na casa de um homem que mal conhecia e ele já estava em cima de mim, tentando tirar minha roupa.

Com muito jeito, de maneira delicada e educada, pra não aborrecê-lo e nem desagradá-lo (como somos bem ensinadas a agir com homens, sobretudo quando se diz respeito a contrariar a vontade deles), eu consegui dizer a ele que queria ir pra casa. É claro que ele não me acatou, dizia pra eu ficar calma, insistia que não ia fazer nada que eu não quisesse, e que a gente ia ficar ali só conversando e namorando um pouco, me dizia como eu era linda, maravilhosa e como eu tinha o pode de excitá-lo e como ele estava feliz em estar ali comigo - estratégia comum aos homens, que sabem muito bem manipular os signos que o patriarcado desenha para nós, mulheres, pra nos coagir a ceder a vontade deles como se essa fosse, na verdade, a nossa própria vontade, ou como se nós tivéssemos sobre eles algum poder que deve ser celebrado e valorizado.

Por fim, constrangida, com angústia e medo, depois de insistir muitas vezes, mas ainda sem perder a doçura e a gentileza, por conta do temor de desagradá-lo, eu consegui convencê-lo a me levar em casa. Muito a contragosto, já completamente mudado, de cara fechada e resmungando, ele me deixou na porta de casa.

Dessa vez eu havia escapado. Senti um alívio imenso. Mas a angústia e o constrangimento permaneceram no peito, do mesmo jeito que eu tô sentindo agora, como uma grande explosão querendo fugir de uma caixa fechada, que eu trancava com força e não permitia que saísse, que eu ainda não permito que exploda.

Dessa vez eu havia escapado.

Mas me lembrei, também, das outras várias vezes em que vivi situações como essa, das dezenas de outras vezes que eu não consegui, que eu, simplesmente, por uma força que eu não sabia explicar, eu não consegui dizer não. Que lá, na hora "H", numa outra casa, num motel, ou dentro de um carro, com um outro cara, em outras várias ocasiões, eu não consegui, eu simplesmente não consegui dizer não. E apertei com força a tampa da caixa do meu peito, tranquei bem trancada a angústia, o desconforto, o constrangimento e o medo, e cedi, sem nenhuma vontade, ao sexo com os caras.

Hoje eu sei que fui estuprada. Que diversas vezes na minha vida fui estuprada. E hoje eu sei nomear esse sentimento, que eu trancava dentro, bem forte, e sobre o qual eu não queria pensar, porque eu queria ser como as outras, eu só queria ser aceita e feliz como as outras meninas, queria ser legal e normal, queria ser amada como elas. Ou como eu achava que elas eram.

Hoje eu sei nomear esse sentimento, mas, por muito tempo, não me permitiram saber do que ele se tratava. Eu sei nomear esse sentimento e a sua causa: chama-se HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA.

Eu abri a caixa. Deixei explodir meus medos. Estou juntando cada sentimento e aprendendo o nome deles. E quando eu abri meu peito, e nomei meus sentimentos, eu aprendi a nomear também quem eu sou. <3


terça-feira, 14 de junho de 2016

SOBRE PROSTITUIÇÃO

Eu realmente queria compreender o que as liberais entendem como "agência" e "empoderamento" quando falam de uma atividade que tem como FUNDAMENTO a redução absoluta de pessoas à mercadoria.

Sim, porque caso vocês não tenham se dado conta ainda, a prostituição só é passível de ser instituída numa sociedade que tem como acordo social a existência de um grupo de pessoas que pode ser destituído de humanidade pra ser objetificado e mercantilizado.

Assim: o fundamento primeiro da prostituição - em qualquer condição -, aquele que torna possível sua existência enquanto fenômeno e fato social, é a objetificação plena do indivíduo, ou seja: a desumanização, a destituição do caráter humano da pessoa para sua redução à mercadoria.

A prostituição não pode ser compreendida a partir de explicações individualizantes. A prostituição só pode ser compreendida a partir da dinâmica sócio-cultural que permite e mantém sua existência e suas significações. Somente numa sociedade que institui e normatiza mulheres como objetos e cidadãos como consumidores a prostituição - que é fundamentalmente o acordo de autorização social para que um grupo desumanize outro e o torne objeto de suas vontades - a prostituição pode existir, pode fazer sentido e, mais: pode ser pensada como "escolha" da mulher prostituída. Fora desse contexto, de uma sociedade que vê como possível e natural a objetificação de mulheres e o direito do homem de consumi-las, a prostituição não poderia sequer ser pensada - a não ser como violência, barbárie desumanização e exploração, que é o que ela realmente é para as mulheres.

Que "agência" e que "empoderamento" pode existir numa atividade fundamentada nessas premissas? Que "agência" e que "empoderamento" podem existir em uma pessoa que "escolhe" ser desumanizada e objetificada pra ser comercializada para atender as demandas do outro? Onde liberais apontam a "agência" e o "empoderamento" eu só consigo ver um terrível erro de interpretação sobre o que a prostituição realmente é.

A perspectiva de que a prostituição pode ser uma atividade empoderadora e libertária é uma perspectiva PATRIARCAL de positivação e naturalização da objetificação e mercantilização das mulheres assim como daquilo que há de mais fundamental pra existência de qualquer ser humano: nossos corpos. É fácil para mulheres acreditarem que a prostituição pode se empoderadora e libertária porque é fácil para mulheres acreditarem nos discursos patriarcais que positivam e naturalizam o nosso subjugo aos homens e a as suas vontades: fomos socializadas pra isso.

O discurso patriarcal defende, supervaloriza e romanceia a prostituição e diversas outras violências contra mulheres por um simples motivo: interessa ao patriarcado nos convencer que sermos objetificadas e exploradas é bom pra nós, interessa ao patriarcado nos convencer disso porque é bom para os homens nos objetificar e explorar. Interessa ao patriarcado escamotear os fundamentos da exploração sexual feminina e florear a violência com falsas promessas de empoderamento e libertação porque interessa ao patriarcado MANTER as atividades de exploração sexual feminina.

O discurso e a prática feminista SEMPRE existirão no sentido de criticar e romper com os discursos e as práticas patriarcais - mesmo as mais veladas e naturalizadas - e NÃO DE REAFIRMÁ-LAS E ENDOSSÁ-LAS.

Logo, defender prostituição como libertação e empoderamento feminino é um discurso PATRIARCAL e não feminista.

Rompa com as perspectivas patriarcais sobre a prostituição e as violências contra nós, rompa com as narrativas e explicações, impregnadas de sentido patriarcal, que romantizam, idealizam, fetichizam e manipulam a realidade sobre esses temas, conheça as perspectivas, as narrativas e os sentidos que as mulheres e as feministas produzem sobre a prostituição e outras violências naturalizadas pelo patriarcado contra nós. Leia, pesquise, investigue, ouça as mulheres. E privilegiem nossas narrativas e produções de sentido sobre a realidade em vez de valorizar as explicações fundamentadas nas perspectivas de homens.




"Dizer que as mulheres têm o direito de se vender, é disfarçar o fato de que homens têm o direito de comprá-las" - Maud Olivier

PROSTITUIÇÃO É SISTEMA DE ESCRAVIDÃO FEMININA


Em maio de 2016, um movimento liberal de mulheres denominado Marcha das Vadias Rio de Janeiro, liderado por um travesti cafetão e político profissional, que há alguns anos já vem defendendo a regulamentação da exploração sexual de mulheres por cafetões através da PL Gabriela Leite, começou também a encabeçar um movimento criminoso de apologia, defesa e incentivo ao turismo sexual. O movimento, liderado por esse travesti cafetão, aproveitou-se da ocasião da realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro e de todo o debate que vem sendo gerado pra COIBIR o turismo sexual durante o megaevento esportivo pra liderar uma campanha de liberação do turismo sexual no Brasil. Com os argumentos de que alguma mulheres "escolhem" serem prostituídas e que o turismo sexual as beneficiaria, ignorando a realidade de que o turismo sexual é uma atividade misógina, predatória e violenta que trafica, explora, mutila e mata MILHARES de crianças e mulheres no mundo inteiro, e reduzindo a questão a um "tabu" moral a ser superado, o travesti cafetão lidera mulheres do Rio a apologizarem e incentivarem o turismo sexual através desse movimento criminoso em benefício próprio.

Esse texto foi escrito por ocasião de uma série de levantes e contestações de feministas abolicionistas contra esse movimento bizarro e criminoso.



Se prostituem? Ou são prostituídas por homens? Quem é o sujeito da prostituição? Quem é seu objeto?

PROSTITUIÇÃO NÃO É ESCOLHA INDIVIDUAL, É SISTEMA DE ESCRAVIDÃO FEMININA


Nenhuma mulher "escolhe" ser prostituída, NENHUMA. Em nenhuma circunstância.

Simplesmente porque a prostituição não pode ser compreendida em termos de escolhas individuais, isso é uma falácia neoliberal. Prostituição é um SISTEMA de escravidão feminina.

Não existe mulher que "se prostitui", mulher não prostitui a si mesma, ela só está prostituída porque os homens são os agentes da prostituição, é deles a demanda por prostitutas, são eles os sujeitos da prostituição, logo, mulheres não "se prostituem" ["se" é partícula reflexiva, que indica que alguém faz algo pra si mesmo e não pra outrem], mulheres SÃO PROSTITUÍDAS POR HOMENS.

Não há 2 sujeitos da prostituição, o sujeito da prostituição é o HOMEM - em qualquer circunstância - a mulher é o OBJETO da prostituição.

Ser objetificada significa ser REIFICADA.

Reificação é fundamentalmente um processo de DESUMANIZAÇÃO.

Nenhuma mulher "escolhe" ser reificada, ela apenas não teve chances ainda de compreender que está sendo porque o patriarcado NATURALIZA o processo de reificação das mulheres e as proíbe de narrarem pela perspectiva das mulheres as nossas versões das histórias de subjugo e dominação masculina, assim como nos impede que nos reconheçamos nessas histórias e umas nas outras. O patriarcado nos impõe a sua própria versão do que a prostituição é para as mulheres: "liberdade sexual", "escolha", "empoderamento". Mas basta ouvirmos o que estão dizendo a imensa maioria das mulheres prostituídas por homens para saber que essa versão é FALSA, que essa é uma versão PATRIARCAL que não condiz com a realidade e nem com os relatos da GRANDE MAIORIA das mulheres prostituídas.

Vamos parar de defender prostituição como se isso fosse feminismo porque NÃO É.

PROSTITUIÇÃO É SISTEMA DE ESCRAVIDÃO FEMININA. SISTEMAS NÃO SÃO FENÔMENOS INDIVIDUAIS, SISTEMAS SÓ PODEM SER COMPREENDIDOS DENTRO DE UMA DINÂMICA SOCIAL COLETIVA .

Parem de propagar o liberalismo em nome do feminismo porque liberalismo NÃO é feminismo.

Feminismo que defende prostituição como "escolha" individual é "feminismo" liberal, só que feminismo e liberalismo são práticas CONTRADITÓRIAS. Logo, "feminismo liberal" NÃO EXISTE, é uma FALÁCIA patriarcal pra manipular e dividir as mulheres".


Recorte da "vitrine" que expõe as mercadorias à venda no site Bahamas, um dos mais tradicionais clubes de prostituição de luxo em SP, do cafetão Oscar Maroni, que faz sua fortuna em cima da exploração sexual, da mercantilização e da violência sobre os corpos das mulheres.




Leitura básica e fundamental sobre o tema: PROSTITUIÇÃO E SUPREMACIA MASCULINA de A. Dworkin.