terça-feira, 8 de novembro de 2016

NEM MORTA OUVIRÃO

Conseguiram. Eu, que me recusava com tanta força a cair nesse lugar, nesse lugar nefasto, adoecido, enfraquecido, débil e debilitante em que o patriarcado deseja e se esforça para que permaneçam todas as mulheres. Eu achei que por já ter enfrentado ele tantas e tantas vezes e ter sobrevivido, e ter mantido a minha lucidez, e estar aqui onde hoje eu estou, e que ter me dado recentemente conta disso me fazia tão forte e tão consciente de tudo, eu achei que eu jamais voltaria a cair nele, porque eu sou uma lésbica e eu estou viva e isso me faz ter uma força e uma coragem imensas. Mas vocês conseguiram. Porque essa desgraça desse sistema é violento, e quanto mais fortemente nos insubordinamos, mais e mais fortemente eles nos golpeiam com suas armas. Até a gente cair. Até nos derrubarem de novo nesse lugar, que é o lugar que eles destinam a todas as mulheres, que é o lugar onde nos querem. Até a gente ficar assim, desamparada, desprotegida, fragilizada, infantilizada, até nos chamarem de loucas, tolas, exageradas, burras, culpadas, até nos condenarem, até nos punirem. Que é pra gente saber bem, exatamente, qual é o nosso lugar nessa sociedade dominada por homens. E não ousar sair dele. Hoje, a plena consciência do que é ser condenada a me desculpar e a indenizar um agressor está me matando. Estou de joelhos, forçadamente de joelhos, sequestrada, desumanizada, humilhada e impotente. Estou sendo posta forçadamente de joelhos aos pés de todo patriarcado, de todo agressor, estou sendo escarnecida publicamente, me cospem, me dão na cara, mijam em mim, e riem. Estou forçadamente de joelhos sendo obrigada a pedir perdão por ter denunciado publicamente um agressor, por ter me insubordinado e me insurgido contra sua agressão. Com o peso de todas as  mãos patriarcais sobre minhas costas e cabeça, sem poder me erguer, me levantar, sou forçada a permanecer de joelhos diante do agressor e a me desculpar com ele por não ter silenciado, por não ter me calado diante de uma agressão.

Como uma criança de 6 anos, eu choro, me sentindo frágil, agredida, humilhada, derrotada. Como uma criança de 6 anos eu choro por não me sentir capaz de fazer outra coisa nesse momento. Como uma criança de 6 anos eu choro sem saber mais o que fazer pra reivindicar a minha própria humanidade. 

E como uma serva estou sendo obrigada a pedir perdão aos meus senhores. Estou sendo obrigada a pedir perdão e a indenizá-los como forma de punição à minha insubordinação, a minha petulância em acreditar e ousar tornar publica a minha certeza de que mulheres são humanas e que, numa sociedade que mata 1 mulher a cada 5 minutos, em que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, em que cinco mulheres são espancadas a cada 5 minutos, num país que é o 5º do mundo em casos de violência contra mulher, nessa sociedade, nesse país, as agressões contra mulheres, contra quaisquer mulheres, não podem ser toleradas de nenhuma forma, por acreditar que, nessa sociedade, nesse país, agressões contra mulheres devem ser publicizadas e denunciadas sempre pelas mulheres, que elas precisam ser encorajadas a denunciar, que elas não podem temer denunciar, que elas não podem temer romper o silêncio, sob o risco desse silêncio continuar nos machucando, nos estuprando, nos matando, como sempre fez; nessa sociedade, estou sendo obrigada a pedir perdão a um agressor por ter tornado publica a sua agressão e o caráter machista dela.

Estou de joelhos, com o peso das mãos de todos os patriarcas me dobrando as pernas. Mas não ouvirão o meu perdão.

NÃO OUVIRÃO SAIR DA MINHA BOCA, NEM DAS MINHAS MÃOS E NEM DE NENHUM LUGAR DO MEU CORPO, AINDA QUE FORÇADO A SE DOBRAR DIANTE DOS PATRIARCAS, NEM DO MEU PEITO, NEM DO MEU SEXO, NEM DO MEU CORAÇÃO, DE NENHUMA PARTE DE MIM VOCÊS NUNCA OUVIRÃO UM PEDIDO DE PERDÃO.

Por todas as mulheres vilipendiadas, humilhadas, agredidas, violadas e mortas, por todas as mulheres que lutam e resistem, por todas as lésbicas que, em todos os minutos de suas vidas, são fortemente empurradas pra esse lugar do silêncio e da desumanização. A força desgraçada que dobra hoje meus joelhos não os dobrará para sempre, porque ela nunca será maior do que a minha.


Sou lésbica, sou feminista, eu resisto.





Ode a todas as mulheres que vivem, que resistem e que lutam

Hoje é uma noite muda e afiada
como uma faca de cortar esperanças.
Hoje a lua é lâmina que estanca o sonho
segundos antes do golpe.
E o feixe de luz que me vaza os olhos pela insônia é


Ó
D
I
O


Mas quando me aniquilam a humanidade,
é o ódio que me humaniza de novo,
é o ódio que me faz não duvidar de mim,
é o ódio que me faz manter a certeza
de que eles estão errados,
que eu não estou louca,
e nem descontrolada,
eu não preciso ser punida,
como querem fazer parecer,
de que eu estou certa,
de que eu sou humana
E que continuar acreditando nisso
é a única forma de me manter viva e sã,
e que embora não seja necessariamente
uma garantia disso, é a única forma


De a gente se manter vivas.


É CONTINUAR ACREDITANDO.

EU CONTINUO ACREDITANDO.

E CONTINUAREI GRITANDO PARA TODAS AS MULHERES:

NÃO DESISTAM DE SUA HUMANIDADE.



[Esse poema começou aqui e cresceu pra fora, mas não pra muito longe.]

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

PROSTITUIÇÃO É ESTUPRO

Se você não consegue enxergar o quão desumanizante a prostituição é, que ela é algo tão violento e violante a tal ponto que sua existência devia ser inconcebível e não naturalizada pelo discurso de que prostituição pode ser empoderadora e libertadora; se você não consegue enxergar isso e acha que pode haver algo empoderador ou livre/libertador na prostituição, se você defende que a prostituição poder ser empoderadora ou libertadora das mulheres, você ainda não entendeu que mulheres são humanas, que mulheres são SERES HUMANAS. Você ainda está raciocinando e dando sentido à mulher dentro da lógica e dos códigos do patriarcado, você está pensando e significando a mulher dentro da lógica, ou seja: você acredita que mulher é coisa, é objeto, é um troço que existe pra servir a homens, bastando que eles comprem seu consentimento - quando consentimento não pode ser comprado e quando isso acontece o nome disso é ESTUPRO.

E isso é ainda mais desesperador quando você é uma mulher.


As relações entre homens e mulheres nunca serão "normais", porque são fundadas na desigualdade. A prostituição serve de manutenção à hierarquia criada por homens e que estabelece a supremacia do sexo masculino sobre o feminino.

Mulheres são frequentemente apontadas como "interesseiras" ou "aproveitadoras" quando ao reproduzir seu papel social de inferior, dependente, subjugada, em alguns aspectos dessas relações desiguais elas aparentemente tiram delas algum "proveito".

Mas a verdade é que nenhum proveito ou benefício há, para mulher, em relações fundadas na desigualdade. E, portanto, não há nelas nenhuma liberdade ou empoderamento. A prostituição/estupro é o fundamento dessas relações de siguais entre homens e mulheres, e o fundamento da prostituição/estupro reside no fato de que, historicamente, a dominação do sexo masculino sobre o feminino se deu, originalmente, quando os homens expropriaram das mulheres os seus meios de sobrevivência - inclusive seu corpo, seu sexo, sexualidade e capacidades reprodutivas - subjugando o sexo feminino e convertendo fêmeas humanas em mulheres ao convencê-las que, por serem inferiores aos homens, deviam a eles temor e subserviência, pois que, expropriadas de meios de subsistir, encarceradas no espaço doméstico e reduzidas a incubadeiras dos herdeiros do macho, sua subjetividade, autoimagem, autocompreensão sobre si e sobre o que é ser mulher, é forjada na sua própria servidão, inferiorização e dependência em relação ao sexo masculino. 

Junto com o sequestro de seus meios de subsistência, toda humanidade da mulher também é sequestrada pelo sexo masculino, agente e sujeito do processo de limitação, redução e exploração da fêmea humana.

Nesse processo de expropriação, de desumanização, de empobrecimento, o corpo e o sexo feminino são convertidos, pelo homem, em moeda. Isso acontece para que, subjugadas, desumanizadas, empobrecidas, as mulheres temam constantemente o medo do estupro e cedam ao casamento, ao contrato social e promessa que os homens fazem de nos protegerem da violência deles mesmo e de nos prover da pobreza que eles mesmos nos causam. Às mulheres que se recusam ao casamento (lésbicas, rebeldes, insubordinadas), a proteção dos homens é vetada: como mulheres passíveis de terem seus corpos acessados por todos os homens (já que abriram mão de ser propriedade de um único) resta a aceitação do estupro mediante a um simbólico pagamento, ou seja: a aceitação da conversão de seus corpos e sexo à mercantilização negociável entre todos os homens. Isso serve, ao mesmo tempo, como instrumento de controle social das mulheres prostituídas, visto que sua subsistência continua subordinada aos homens, que negam-lhe trabalho, terras e acesso à produção ao mesmo tempo que - não interessando-lhes a morte delas - convertem seu corpo em mercadoria, condicionando a subsistência delas a submissão ao estupro mediante pagamento. O pagamento, que não as deixa morrer de fome, existe para que permaneçam vivas e sirvam de exemplo, em toda sua miséria, servidão sexual e vitimização, a todas as mulheres, para que todas as mulheres não se rebelem contra o casamento, contra converter-se em propriedade de um único homem, pra mostrar a elas que a alternativa a isso é ainda muito pior. 

Esse é o fundamento da prostituição: expropriada e destituída por homens de qualquer forma de sobreviver, recusando o casamento como forma de receber proteção e proveção masculina contra a violência e a miséria que eles mesmos causam as mulheres, seu corpo é convertido por homens em mercadoria para que ela continue no subjugo masculino e ainda sirva de exemplo a outras mulheres.

E como não podia deixar de ser, todo esse processo de origem das relações de prostituição precisa ser apagado, o verdadeiro sentido da prostituição vai sendo apagado pela História escrita pelos homens, pela Arte e pela Literatura produzida pelos homens, pela Filosofia, Sociologia e por Teorias produzidas por homens... durante toda história das sociedades patriarcais, os homens, em suas práticas e discursos, emprenham-se para dar outros significados pra prostituição, para que seu significado mais fundamental e mais verdadeiro seja esquecido, seja apagado. Mas esse significado ressurge, vez ou outra, na história, pelos discursos de mulheres, pelas memórias das mulheres, pelas falas e vivências das mulheres, esse significado ressurge porque é real, porque ele é fruto da violência e da dominância masculina, que os próprios homens não conseguem esconder. Por isso, mesmo com todos discursos falseados sobre a prostituição pra esconder seu verdadeiro caráter, seu sentido mais fundamental, os homens não conseguem esconder seu verdadeiro significado, porque ele reside e nasce e renasce na própria violência masculina, real e iminente em toda sociedade patriarcal: prostituição é a DEGRADAÇÃO das mulheres pelos homens. 

Não se enganem: esse é o verdadeiro sentido da prostituição. Num sistema patriarcal em que mulheres são forjadas como gênero a partir da expropriação de seus meios de subsistência e que, portanto, não são sujeitas de si, se suas histórias, narrativas e direitos, a prostituição é muito menos sobre o "direito" de mulheres venderem seus corpos e muito mais sobre o direito dos homens de comprá-los. Não há nenhum benefício, empoderamento ou liberdade pra nenhuma mulher em estar numa função que tem como fundamento a servidão feminina. Mas os homens farão de tudo para que não enxerguemos isso, para que a gente não dê conta disso, inclusive tentar nos convencer que o acordo que eles estabeleceram entre eles sobre o direito de todos os homens aos nossos corpos e aos nossos sexo são, na verdade, ou um benefício, ou uma escolha empoderadora ou uma libertação pra nós.