segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A DOMINAÇÃO EPISTEMOLÓGICA COMO O FUNDAMENTO MAIS PROFUNDO DE HOMENS "TRAVESTIDOS" DE MULHERES.

[Um ensaio sobre Ciência, Senso Comum, relação entre Sujeito e Objeto e sobre os limites patriarcais entre as ideias acerca do que é "próprio de" e o que "está sob propriedade".]

A partir de uma observação atenta sobre o comportamento dos machos e SUAS FANTASIAS de mulher durante o carnaval, resolvi fazer essa reflexão sobre as origens da dominação feminina.

Durante os festejos, pude perceber, em alguns exemplares masculinos mais que em outros, mas talvez como fenômeno cada vez mais crescente em relação a outros carnavais (será mesmo, ou será que eu apenas não observava com tanta atenção?), que eles atuam com cada vez mais requintes de perversão acerca de seus fetiches sobre o que seria o feminino: tanto entre machos gays quanto em heterossexuais, eles elaboram cada vez mais suas FANTASIAS DE FEMINILIDADE: usam cílios postiços, meias de renda, com detalhes, usam babados, brincos coloridos, arranjos de cabeça... cada vez mais me parece que eles escolhem minuciosamente e com muito cuidado e gosto - não mais como uma indumentária tosca e feita às pressas e de qualquer jeito apenas pra brincar nas ruas - o que vão usar nas suas alegorias de mulher. Durante a observação pude ver até mesmo um deles parado numa mureta com um bom kit de maquiagem numa necessaire e um espelhinho aparado na grade do muro fazendo retoques caprichosos no próprio rosto... Ah, e claro, adoram andar com calcinhas, maiôs e biquínis bem enterrados na bunda também. Eles tem se empenhado bastante em sofisticar o usos dos signos que atribuem às mulheres e à feminilidade, cada vez mais e por cada vez mais homens.

É curioso observar o fetiche que homens CRIAM SOBRE as mulheres. Vocês já viram mulheres com essa obsessão de emular o macho? Vez ou outra até surgem umas mulheres ou grupos de que tentam, mas o movimento de homens emulando nossa condição atravessa o tempo, a história, os espaços, ele é uma obsessão perversa que perdura e perpassa épocas e sociedades. Os homens, há décadas, há séculos, há milênios, ELES SE INSTITUEM a si mesmos como "travestis", "cross dressers", "drag queens", "transgêneros", "transexuais", e "mulheres no carnaval" (ou com outros nomes/termos, em outras celebrações e outras ocasiões e circunstâncias em que se permite a expressão de suas "fantasias" sobre o que seria uma mulher). Histórica e massivamente, eles têm emulado os OS RITUAIS, PRÁTICAS E SÍMBOLOS que eles mesmos criaram (e continuam criando) para a NOSSA SERVIDÃO, que eles criam pra nós, mulheres, com base na nossa condição de sexo feminino, os rituais e símbolos que eles mesmos criaram pra marcar nossos corpos, nosso sexo, nossa subjetividade, nossa existência como AQUILO QUE EXISTE A PARTIR E EM FUNÇÃO DELES MESMOS (pra isso existe maquiagem feminina, roupa de mulher, imposição de delicadeza, depilação, etc). Histórica e massivamente eles emulam os rituais e símbolos que criaram pra marcar nossa servidão a eles pelo nosso sexo, pra NOS REDUZIR à nossa condição biológica e criar uma função PRETENSAMENTE NATURAL sobre ela: servir sexualmente aos homens pra lhes dar prazer e incubar seus filhos, para o sexo reprodutivo, a heterossexualidade e a maternidade compulsórias de que tanto fala o feminismo - esses são os significados mais profundos dos rituais, práticas, gestos e costumes chamados de "femininos" e que os homens caricaturam e emulam quando lhes convém.

Então, constantemente, em circunstâncias e momentos diferentes da história, das sociedade e comunidades, os homens se organizam em torno desses símbolos de dominação e os recriam, e criam novos rituais sobre eles, rituais de encenação, de carnavalização, de teatralização, de celebração masculina sobre esses símbolos e rituais que nos reduzem e servilizam, pra nos lembrar quem é que tem o poder sobre eles. Constantemente eles celebram os seus próprio símbolos (sim, os símbolos de feminilidade são de PROPRIEDADE DELES, pertencem a eles e não a nós, a nós eles são impostos) e a emulação destes por eles mesmos, porque todo grupo dominado precisa ter sob controle os signos de sua dominação sobre o outro grupo e precisa constantemente reafirmar-se sobre isso. Assim fazem porque é assim que impõem ao outro sua lógica mais perversa e dominante e destroem o outro, em sua mais profunda possibilidade: NA CONCEPÇÃO QUE O OUTRO TEM DE SI MESMO.

É aniquilando o que o outro é e qualquer exercício do outro para construir a si mesmo, e impondo ao outro a sua própria versão do que o outro é que acontece a dominação mais difícil de romper: A DOMINAÇÃO EPISTEMOLÓGICA E COGNITIVA.

Historicamente, os homens têm feito isso com mulheres, de diversas formas.

E vestir-se de mulher, em eventos e encenações de teatralização para o escárnio e a chacota é o momento de lembrar às mulheres o ridículo que elas são, é lembrar a elas que os signos criados por homens para nós - o que eles chamam de feminilidade - são passíveis de chacota, pois que são inferiores, pois que NOSSA PRÓPRIA CONDIÇÃO É INFERIOR. E essa emulação tem um sentido muito profundo na manutenção das sociedades patriarcais: embora muitas de nós não tenhamos nos dado conta ainda , emular esses signos serve para afirmar e reafirmar que esses signos são deles, pertencem a eles, não são nossos, e de nós eles são apenas a nossa redução, a nossa desumanização, a nossa própria dominação, a nossa sujeição, justamente a redução e sujeição que permite aos homens que nos definam como mulheres a partir dos sentimentos e das necessidades deles mesmos: incubadeiras e objetos sexuais.

No entanto, há outro aspecto mais profundo dessa emulação. Um aspecto tão profundo que atravessa a versão teatralizada dessa emulação, e que também perpassa diferentes épocas, espaços e sociedades: o que está mais profundamente intrínseco à prática de homens emularem constantemente, e de maneiras e circunstancias diversas, os signos de servidão que eles criam e impõem às mulheres, é a vontade de aniquilação do dominador sobre aquilo/aquela que será dominada, é a antiga relação SUJEITO X OBJETO.

Essa relação, sujeito x objeto, como forma de produzir conhecimento sobre o mundo e tudo que existe nele, tem seu auge na cultura racionalista antropocêntrica, que é, mais precisamente, uma cultura ANDROCENTRADA (que tem o sujeito masculino/falocentrado como referencial de humanidade e como centro de toda e qualquer produção de conhecimento), despontada por volta do século XIII na Europa do RENASCIMENTO, reelaborada entre os séculos XVII e XVIII, principalmente a partir do ILUMINISMO Frances e Alemão. No entanto, essa lógica do sujeito x objeto é ainda mais antiga, anterior ao Renascimento e ao Iluminismo, e remonta às sociedades patriarcais europeias da antiguidade e às filosofias engendradas por elas, que instituíram a CISÃO FUNDAMENTAL ENTRE O HOMEM E A NATUREZA (homem, no caso, o SUJEITO FALOCENTRADO, nunca no sentido de "ser humano" como a pretensa humanidade inclusiva de mulheres na qual, historicamente, os sujeitos da humanidade tem mentirosamente jurado nos inserir) como forma única e hegemônica de produção de conhecimento, já nas antigas civilizações greco-romanas, e das quais os patriarcas da Ciência e da Filosofia querem fazer crer que somos herdeiras naturais e incontestes, para forçar a manutenção dessa  forma de produzir conhecimento sobre a realidade até os dias de hoje.

Nessa forma patriarcal, antiga e hegemônica (porém não natural e não exclusiva), de produzir conhecimentos e significados sobre a realidade e o mundo natural, é preciso, antes, que o sujeito falocentrado se institua a si mesmo como humano, apartado do mundo natural, e institua, ele mesmo e a partir de si mesmo, tudo QUE NÃO É O HOMEM, tudo que NÃO é o SEXO MASCULINO HUMANO (a condição material  e existencial dominante daquele que é o SUJEITO DE SEU PRÓPRIO FALO, o sujeito falocentrado), como não-humano e passível de ser escrutinado pela vontade desse homem soberano em sua supremacia sobre todas as coisas existentes. É preciso, então, SE APROPRIAR dessas coisas, se colocar acima e além delas e torná-las SEU OBJETO: DOMINÁ-LAS, MEDI-LAS, NARRÁ-LAS, CONTROLA-LAS PARA CONHECÊ-LAS E DELAS SE UTILIZAR E SERVIR PARA MANUTENÇÃO DE SUA PRÓPRIA SUPREMACIA E PODER - e, nesse processo, de separa-se do mundo, fundar o "eu" e sua humanidade, torna-se a MULHER, pela diferença sexual, seu primeiro OUTRO, seu processo original de se apartar do mundo e classificar como mundo tudo aquilo que não é ele mesmo - a MULHER é, portanto, seu primeiro OBJETO, e a partir de sua dominação e controle, o homem parte para a empreitada de dominar e controlar todo o resto, todo mundo natural, toda natureza da qual ele se apartou através da sua própria humanização enquanto desumanização da fêmea.

A aventura perversa do homem - ser humano apartado do mundo - começou na estruturação de seu "eu", de seu "sujeito", da compreensão de si mesmo, e se desdobra sobre o mundo, até que se converta em discurso de Verdade sobre ele, a Ciência.

Pela Ciência falocentrada do Humano x Inumano, do Sujeito x Objeto, é preciso, então, escrutinar, investigar, dissecar, destroçar, desmanchar, abrir, despelar, desmantelar os ossos, retirar os órgão internos, decompor as substâncias, aquecer, derreter, desmanchar, modificar, evaporar, é preciso PENETRAR em seu objeto com profundidade, INVADIR, MANIPULAR o seu objeto em seu íntimo, em seu interior, em sua matéria, em seu átomo, SUBMETER e CONTROLAR o objeto segundo suas vontades e experimentações, para checar suas reações, suas possibilidades, suas resistências, sua resiliência, para manter o objeto sob seu controle e poder dizer sobre ele o que ele é e poder se servir dele, utilizá-lo, explorá-lo, gerar riqueza e manter seu poder e supremacia sobre ele. É preciso fazer isso sem dó, sem compaixão, sem afeto, é preciso abrir mão de qualquer sentimento pelo objeto, é preciso se isentar de qualquer empatia, é preciso SER NEUTRO, porque o conhecimento do mundo (produzido pelo controle masculino para servi-lo, é claro) tem que estar acima de tudo, e é oferecido pelo macho como bem mais precioso da humanidade, independente das torturas que ele impõe a todas as criaturas e formas de vida que submete sob o escrutínio perverso do que ele chama de saber e conhecer - esse é o modelo de Ciência falocentrada e patriarcal, fundado na subjetividade masculina e a partir da fundação do macho como sujeito e da fêmea como objeto, do macho como humano e da fêmea como pertencente ao mundo natural a ser escrutinado, controlado e explorado. Essa forma de conhecer (a si e ao mundo), essa consciência (de si e do Outro), essa lógica e racionalidade (a forma como se dá sentido a existência de si e de todas as coisas), não se restringe à Ciência: assim o macho humano, fundado enquanto sujeito falocentrado, concebe TODAS as suas relações e sociabilidades, assim se funda a Ciência falocentrada e todas as relações do sujeito falocentrado estão circunscritas nessa racionalidade.

E não há nada de neutro nisso. Nem enquanto Ciência, nem enquanto saberes tradicionais dissipados pela sociedade como Senso Comum.

A falsa ideia de NEUTRALIDADE NA CIÊNCIA, nada mais é do que a afirmação da supremacia androcêntrica sobre as mulheres e sobre todas as coisas. É a afirmação e reafirmação da crença instituída pelo macho de que o sujeito falocentrado está acima e além do mundo natural, pois que se institui enquanto sujeito (falocentrado) apartado dele. A falsa ideia de neutralidade científica existe a partir da relação de dominação construída na supremacia masculina sobre a fêmea, a partir de sua desumanização, e pelo desprezo a tudo que não é o próprio sujeito do falo, se desenvolvendo e consolidando, posteriormente, no pressuposto científico da relação sujeito x objeto, que visa unicamente o controle e a plena dominação masculina de tudo que ele torna objeto sob o argumento de que é preciso construir o conhecimento sobre esse objeto para, então, dizer sobre esse objeto, a partir de sua própria perspectiva, de sujeito, o que o objeto é e como ele deve ser amplamente usado e explorado para benefício do macho - isso é a Ciência Ocidental. Essa lógica se funda a partir do desenvolvimento do pensamento falocentrado original sobre si mesmo e sobre a fêmea e se desdobra sobre todo mundo natural, sobre tudo que existe; se desenvolve, toma a forma de Ciência e retorna, pois, sobre às mulheres, de maneiras ainda mais requintadas e perversas e sob argumentos e discursos filosóficos e científicos.

E isso é a Ciência, a Literatura, a Medicina, a Biologia, a Ciência Jurídica, a Psicologia e o Direito, isso é, também, o SENSO COMUM, isso é a forma de produzir conhecimento patriarcal, isso é a EPSITEMOLOGIA antropocentrica/androcentrada, isso é a relação sujeito/objeto que permeia, desde muito tempo, a maneira patriarcal de produzir conhecimento sobre a realidade, sobre o mundo, sobre o outro, sobre as relações, sobre as mulheres - isso é a epistemologia, o conhecimento, a sociabilidade patriarcal: em seu sentido mais profundo, é isso que estamos dizendo quando afirmamos que, em sociedades patriarcais, MULHERES NÃO SÃO SUJEITOS, SÃO OBJETOS.

É isso o fundamento mais profundo da dominação epistemológica que o patriarcado, através de sua Ciência, de sua literatura, de sua Política, de sua filosofia e de sua Filosofia Jurídica, de suas tecnologias, de suas teorias e práticas científicas e de senso comum, tem feito conosco, mulheres, por todos os milênios e séculos. Porque isso é o que homens fazem para conhecer e saber o que é o mundo. É isso que é a EPISTEMOLOGIA PATRIARCAL e a história nos tem mostrado que A IDEIA DE CONHECIMENTO MASCULINA NÃO PODE SER DISSOCIADA DO EXERCÍCIO DO CONTROLE, DA TORTURA, DA DESTRUIÇÃO, DA DOMINAÇÃO E DA EXPLORAÇÃO, que o sujeito falocentrado abandonou a interação dialética com o mundo como forma de produzir conhecimento para impor, ao mundo, a sua própria supremacia - e é isso que faz a cultura patriarcal em todas as instâncias da vida em sociedade, na Ciência instituída, na produção de tecnologias, na produção de sociabilidades, em relação às mulheres, a outros povos, à terra, às águas, ao demais animais, a tudo que ela, a Ciência Patriarcal instituída, pode colocar sob seu escrutínio e controle para dominar e explorar.

Muitas vezes levada ao extremo, em nome do conhecimento, do progresso, do desenvolvimento da humanidade (que humanidade?), do bem estar social geral, essa relação sujeito x objeto toma aspectos muito particulares e ainda mais perversos, visto que, é preciso abrir, dissecar, torturar, seu objeto até sua morte, para observar e controlar todas as suas reações e conhecer e poder dizer sobre esse objeto o que esse objeto é. A tortura, o extermínio, a aniquilação e a morte são práticas comuns da Ciência Patriarcal. Por extensão, apagar, aniquilar, exterminar, matar se tornam pressupostos e práticas aceitáveis e recomendáveis para o conhecimento. E é isso que os homens e sua Ciência têm feito há milênios, com as mulheres e com tudo aquilo que eles percebem como vulnerável a sua dominação.

Dentro desse cenário, é preciso considerar, no entanto, a perspectiva de que, mesmo que homens se esforcem por nos objetificar e dominar nessa lógica de que são eles o sujeito e nós o objeto, e nos massacrem a tantos milênios com essa violência que chegam a nos convencer disso, há ainda uma centelha de consciência nós que historicamente têm resistido a essa desumanização e que nos diz que, assim como eles (ou mais do que eles) somos seres humanas, sencientes, racionais. E é essa centelha que tem nos tornado, a algumas de nós, capazes de nos rebelar de maneira ciente e organizada contra essa relação perversa que os homens estabeleceram. Contra esse movimento feminino, os homens se insurgem com ainda mais força em seus discursos, narrativas e práticas cientificas, filosóficas, psicologizantes, médicas, jurídicas, literárias falocentradas e patriarcais: A necessidade de aniquilar, então, todas as forças de resistência, todas as possibilidades de existência livre de seu objeto (nós, mulheres), pra que esse objeto se esqueça em absoluto, apague definitivamente, qualquer mínima consciência de que é algo que não um objeto do sujeito masculino, que é algo além e muito maior do que o que o sujeito masculino diz, nomeia e define a partir de si mesmo como objeto. É preciso que a Ciência Patriarcal e todos os seus discursos exterminem, aniquilem, matem qualquer possibilidade remota de memória ou consciência de que viver livre do controle, da dominação e da definição masculina sobre as mulheres é uma possibilidade legítima. Para tanto, é preciso, então, que a dominação masculina sobre as mulheres se pareça tão NATURAL que o objeto da dominação não a enxergue, sequer, como prisão/dominação.

Guardem essa explicação sobre a fundação da Ciência Ocidental Patriarcal a partir da relação falocentrada Sujeito x Objeto. Retomemos, agora, o assunto que iniciou esse texto: O que move, historicamente, em épocas e condições diferentes, homens a "se vestirem" de mulher - em algumas circunstâncias a tal ponto de suporem crer que, por emular tão precisamente os signos que eles mesmos criaram pra nós, poderiam sentir-se como nós, poderiam sentir o que é estar nessa condição milenarmente escrutinada, controlada, explorada, dominada e definida pelo sexo masculino, ainda que nunca a tenham experimentado de fato, a não ser como a ALEGORIA dos signos que eles mesmos criaram, através de seu escrutínio, para nos definir segundo suas próprias necessidades de exploração e dominação sobre nossos corpos e existências?

O que move os homens nesse processo, é a vontade de controlar e dominar o outro (no caso, a mulher). Esse processo está enraizado na consciência masculina tão fortemente porque essa é a forma do macho de conhecer, pro macho, conhecer é controlar. Esse é O MESMO MOVIMENTO da supremacia masculina do sujeito falocentrado representada pela relação sujeito x objeto que existe para que o sujeito falocentrado possa dar a mulher a sua própria definição de mulher e dizer sobre a mulher o que ela é, segundo às necessidades dele mesmo. É o mesmo movimento de dominação, controle e exploração que o homem convencionou chamar de "conhecer" e "saber" (por isso afirmam que "sabem o que é uma mulher embora nunca tenham experimentado, de fato, a nossa condição), o movimento de dominar o objeto não humano (no caso, a mulher) e dissecá-lo, de abrir, desmanchar, desfazer, desmontar, desfigurar, de INVADIR E PENETRAR seu objeto em seus aspectos mais íntimos, para TOMAR POSSE de seu objeto, possuí-lo de tal forma, de maneira tão profunda e íntima, dar a ele seus nomes, suas ideias e seus conceitos, com tanta PROPRIEDADE, a ponto de fazer crer que CONHECE tão profundamente o outro que pode reduzir o outro a própria visão que tem dele, ignorando completamente que a materialidade, a história e a narrativa do outro senciente, racional e resistente sobre a sua própria condição. Assim, o macho, sujeito de si e do mundo, doador de sentido a tudo que existe, elabora uma visão PRÓPRIA do que é o seu objeto (nesse caso, a mulher), e de tal maneira impositiva e que pode ser tão bem emulada pelo seu próprio sujeito, que o outro, na limitação dessa definição imposta sobre sua cognição e epistemologia, veja a caricatura do dominador COMO SE FOSSE A SI MESMO.

Quando homens emulam, se travestem, celebram, afirmam em seu próprio corpo os signos de dominação que impõem às mulheres como se isso fosse a própria condição feminina, e mais: cada vez que ultrapassam o limite da teatralização e afirmam que, por emularem esses signos eles sabem o que é ser uma mulher, o que estão afirmando é, nada mais nada menos, seu fetiche e sua vontade de aniquilação sobre nós, estão reafirmando sua própria supremacia através da sua velha forma de produzir conhecimento: a relação sujeito x objeto. Os homens, como indivíduos sujeitos de uma cultura falocrática, misógina e supremacista, têm uma vontade de dominação, exploração tão grande sobre seu objeto, que o objeto fetichizado (no caso, nós, mulheres) precisa ser aniquilado: para que eles possam nos dominar e explorar, e aniquilar em nós qualquer traço de resistência, eles precisam nos convencer que esse pastiche ridículo que eles criam de nós, não pode ser outra coisa que não nós mesmas, que esse pastiche reduzido e limitado de humanidade é o que nós somos, eles precisam continuar nos dizendo sempre o que nós somos, e nos impedindo de nos nomear, definir e narrar a nossa própria história - e por isso nos dizem que, por emular os símbolos e ritos que criam pra nós sabem o que nós somos.

Assim, o[s] homem[s] - a cultura masculina e cada indivíduo masculino forjado a partir dela - carrega em sua mais íntima convicção de si (a sua ideia de "eu", em seu "sujeito") a plena certeza de sua propriedade sobre seu objeto, sobre as mulheres. E eles creem tão vigorosamente na força dos símbolos e rituais de feminilidade que criaram e instituíram pra nos reduzir e nos aprisionar em nossa biologia, na nossa animalização e desumanização, para introjetar em nós a concepção reduzida e desumanizada que eles têm de nós como se fosse nossa própria, que eles tem a plena convicção de que basta eles emularem esses símbolos, os símbolos de nossa redução e desumanização, pra nos convencerem que nós somos essas criaturas desumanizadas que eles emulam. Essa é uma estratégia fundamental e antiga do patriarcado, homens se fazendo passar por nós, através da emulação do pastiche desumanizado que nos criam, para nos fazer crer que nós somos isso.

Essa estratégia sempre existiu, em diversas formas, em diversas ocasiões, em culturas patriarcais em diferentes épocas. Ela não é nova, e ela sempre existiu como criação masculina e como método de conquista e dominação de mulheres, ela nunca foi uma subversão masculina, uma transgressão, nada, porque quem cria e domina a norma  não tem interesses materiais de rompê-la. Esses fenômenos de feminilização e de travestismos de sujeitos masculinos só podem ser concebidos e compreendidos dentro de uma sociedade sexualmente hierarquizada que cria uma função sexual e papéis sociais (papéis de gênero) para mulheres, apenas no seio de uma sociedade sexualmente hierarquizada a ideia de "gênero", e de possível transição de gênero, pode ser concebida e compreendida, em nenhum outro espaço ou solo epistemológico essas ideias teriam algum sentido ou significado - e tudo que é produzido pela cultura masculina sobre ela mesma, circunscreve-se a ela e não poderia jamais rompê-la. Os fenômenos de travestismos e feminilização de homens sempre existiram como formas de manutenção da dominação das mulheres pelos homens, a diferença, agora, é que eles resolveram chamar isso de feminismo e reivindicar que homens feminilizados e travestidos de mulheres tenham voz no único espaço que enxergava e denunciava isso como estratégia de colonização: o movimento organizado de mulheres. Mas a verdade é que não há diferença, pois o fundamento que leva homens a emularem os signos de redução e desumanização que produzem pra nós para reafirmar o que é ser mulher a partir de suas perspectivas falocentradas e misóginas é o mesmo que sempre foi, porque isso é o próprio patriarcado fazendo, como sempre fez, a sua manutenção e a manutenção de sua epistemologia. A diferença consiste apenas em ter adaptado tão eficazmente através do discurso pós-moderno do transgênero-liberal* a sua prática de colonização e dominação das mulheres dentro dos únicos espaços nas sociedades patriarcais em que isso era combatido, que aquilo que combatíamos passa a ser, agora, quando não "aliado" do movimento das mulheres, o próprio protagonista do feminismo.

O patriarcado apenas se aproveitou de fenômenos históricos já existentes de manutenção de seu próprio poderio (as teatralizações de mulheridade, a feminilização e os travestismos masculinos sobre mulheres) e os potencializou, enxergou neles uma possibilidade ainda mais forte de manter sua dominação: o patriarcado criou, a partir desses fenômenos, a sua forma mais perversa e eficaz de continuar permitindo que homens nos definam, definam o que é ser mulher, e continuem dizendo sobre nós o que nós somos e narrando a nossa condição sob a perspectiva deles: o transgênero/transexual do sexo masculino, o sujeito falocentrado, que reivindica seu lugar de protagonista dentro do movimento que historicamente combatia o falocentrismo e a misoginia desse sujeito, sob a alegação que negar-lhe esse espaço é negar lhe a própria humanidade quando, na verdade, é o sexo feminino, a condição que ele reivindica sem nenhuma materialidade, apenas com seu argumento de subjetividade, essa sim, a condição historicamente por ele desumanizada. Isso é dominação epistemológica, isso é colonização epistemológica, é o fetiche, a vontade de dominação, de aniquilação, em sua forma mais vigorosa e perversa, respondendo à resistência histórica das mulheres a essa desumanização e objetificação: para o macho não é suficiente apenas dominar e definir o objeto possuído, pois que ele se rebela e está constantemente questiionando essa dominação e essa definição. Então, o macho precisa, com ainda mais vigor, radicalizar a relação sujeito x objeto e não apenas definir esse objeto, mas tornar-se ele mesmo o objeto a ser definido, ele precisa SER o objeto do seu fetiche para provar que o define com propriedade. Desta forma, não basta possuir, abrir, quebrar, escrutinar, massacrar, explorar, é preciso aniquilar a tal ponto que esse objeto morra, vazio de sentido legítimos, para que o macho possa, na plenitude de sua autoridade, dar a esse objeto os seus próprios sentidos e significados, como se fossem, o sujeito e o objeto, e o objeto que luta e resiste esteja desautorizado de contestá-lo.

Tornando-se o sujeito o próprio objeto, o sujeito converte também a ideia de que o objeto é algo que está sob SUA PROPRIEDADE - o que a centelha de consciência autônoma e humana das mulheres vêm denunciando e se recusando a aceitar -  mas sim que é, agora, aquilo que É PRÓPRIO do sujeito, ou seja: que não pode ser questionado. Assim, se concretiza a vontade de dominação e aniquilação do sujeito falocentrado sobre as mulheres, e o sujeito pode, então, garantir inquestionavelmente a sua propriedade sobre o objeto, e de maneira inquestionável, aquilo que era antes classificado e questionado como [injusta] propriedade passa a ser reclassificado epistemologicamente como algo que é próprio do sujeito falocentrado e que não deve, portanto, ser questionado, a título de violar seu Direito Humano, sua própria dignidade. A mulher, que vinha historicamente lutando contra sua dominação (que é material, mas também semântica, filosófica e epistemológica) e objetificação, é ressignificada - a partir das mesmas práticas de dominação masculina, agora escamoteadas pelo discurso do transexualismo de que homens podem ser mulheres - e reconduzida ao solo de sua dominação, a mulher volta a ser UMA CRIAÇÃO DO HOMEM. E como criação do homem, ela torna a ser aquilo sobre o qual a sociedade liberal, fundada na ideia da propriedade privada, concederá ao homem o DIREITO NATURAL DE PROPRIEDADE, ou seja: a mulher é reconduzida a seu lugar de objeto.

Outro desdobramento observável dessa lógica dentro da cultura patriarcal, é que os homens, tão perversos em seu intuito de manter essa estratégia de dominação, estiveram, durante toda a história, dispostos até mesmo a sacrificar alguns indivíduos de seu próprio grupo: aqueles que rompem a barreira da teatralização e ousam descartar definitivamente alguns de seus papéis de macho dentro do REGIME HETEROSSEXUAL de manutenção patriarcal, mais especificamente A FUNÇÃO HETEROSSEXUAL, do MACHO REPRODUTIVO. Nesse ponto, duas estratégias patriarcais de controle entram em CONFLITO: por um lado é necessário haver sujeitos masculinos que emulem os signos da dominação de fêmeas para reafirmá-los através de seu próprio poder, linguagem e epistemologia, por outro lado é preciso garantir a manutenção do padrão masculino de VIRILIDADE (a dominação, o ATIVO, nunca a PASSIVIDADE, imposta como característica PRÓPRIA DAS FÊMEAS) para que o regime heterossexual não se desfacele. Quando um grupo de homens tenta romper as regras estabelecidas para os rituais de emulação apenas como encenação e teatralização, ele precisará ser SACRIFICADO, PUNIDO (daí a violência contra homens gays e travestis), pois ameaça a manutenção das funções sociais e sexuais do macho e da fêmea estabelecida e perpetuada pelos ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO. Quando esses homens feminilizados reivindicam alguma autonomia para suas formas de viver feminilizadas e/ou travestidas, eles precisam ser punidos, para que DEIXEM DE EXISTIR SOCIALMENTE: para que morram de fato ou para que, ao menos, não tenham suas existências homossexuais reconhecidas publicamente. Quando se tornam inevitáveis, quando se dá conta que não se pode controlá-los através das regras estabelecidas para os rituais de encenação e teatralização, eles devem permanecer, ao menos, escondidos da sociedade, na marginalidade ou nas esferas mais privadas das dinâmicas sócio-interativas.

Nesse sentido, o fenômeno do TRANSGÊNERO-LIBERAL* surge, também, para corrigir esse conflito entre as duas estratégias de dominação patriarcal (a manutenção de práticas de emulação dos signos de feminilidade por homens e a manutenção da hierarquia e das funções sociais e sexuais do macho e da fêmea no regime heterossexual), surge para continuar dominando fêmeas através da reafirmação jocosa da feminilidade pelos próprios machos sem danificar a estrutura heterossexual, pois que preserva a significação do conceito de homem ao REALOCAR os indivíduos do grupo de machos insubordinados, que antes deveriam ser sacrificados pelo próprio patriarcado, do gênero masculino para o feminino, esse sim o grupo de pessoas a qual está autorizada toda violência, inclusive àquela a que se precisa se submeter os indivíduos insubordinados do outro sexo. Ao serem realocados de gênero, os indivíduos do sexo masculino poderão, enfim, se comportarem dentro dos papéis patriarcais designados pelo patriarcado apenas para as fêmeas: poderão ser "femininos", "passivos", "frágeis", "delicados" e "submissos", poderão se utilizar de todos os signos, gestuais, indumentárias e etc, que o próprio sexo masculino institui para ritualizar nossa submissão. Agora, portanto, RESIGNIFICADOS como mulheres, poderão ser realocados no "gênero feminino", no grupo passível de toda dominação e quaisquer sacrifícios, sem, no entanto, macular a casta masculina e obrigar à sua própria violação, e também sem romper com a hierarquia sexual que mantém a dominação e a exploração da casta sexual masculina sobre a casta sexual feminina, sem perturbar o regime da heterossexualidade. Assim, se dá continuidade ao sacrifício de indivíduos masculinos pelo patriarcado, sem ameaçar, no entanto, a casta sexual masculina, porque, agora, esses indivíduos pertenceriam não mais ao grupo de supremacia reconhecida,  mas ao grupo ao qual está autorizada qualquer tipo de violência e que pode/deve ter sua subordinação violentamente perpetuada.

Todo sujeito masculino é um sujeito falocentrado, pois que concebe o mundo a partir do próprio corpo, que é nossa primeira fonte de contato com o mundo externo, e, portanto, do próprio falo (seja como afirmação, seja como negação, mas o falo pertence ao macho e à sua experiência sensorial do mundo). Todo sujeito masculino é, portanto, um sujeito falocentrado. No patriarcado e nas suas relações entre homens e mulheres, todo sujeito falocentrado é sujeito em relação à mulher, ao objeto. Nenhuma pessoa do sexo masculino sofre na sociedade patriarcal por ser uma mulher, por ser um objeto do sujeito falocentrado. Nenhuma pessoa do sexo masculino, sujeito nas interações sociais com as mulheres, os objetos, desconhece os rituais que a cultura patriarcal cria para conceber e submeter mulheres como objetos - nesse sentido, TODA perspectiva masculina sobre a condição feminina é dominante, é objetificadora, é fetichizadora, e, portanto, violenta e reafirmadora de si mesma enquanto lógica patriarcal sobre  mulheres/objetos, INCLUSIVE A DAQUELES QUE AFIRMAM SE SENTIREM MULHERES por emularem os signos de nossa dominação. A relação entre o sujeito falocentrado e o objeto feminino é uma relação de propriedade de todos os sujeitos masculinos sobre todas as mulheres. Uma relação de propriedade que visa, como sobre tudo do qual o sujeito se apropria como seu objeto, se desenvolver e se autolegitimar a tal ponto que possa, o homem, sujeito do conhecimento, dizer do objeto aquilo o que o objeto é, ou seja: aquilo que é próprio dele.

No entanto, dentro de uma perspectiva dialética de produção de conhecimento, uma perspectiva crítica à essa relação sujeito x objeto tal qual é estabelecida pelo androcentrismo e pela reafirmação da supremacia masculina, nenhuma pessoa do sexo masculino poderá jamais dizer ou saber o que é próprio do sexo feminino (suas especificidades, suas necessidades, suas demandas, naturais e históricas), pois que não o experimenta materialmente e dialeticamente em sua relação com a realidade que, historicamente, o forja. Numa perspectiva materialista e dialética, o sexo masculino, vista-se, sinta ou fantasie ele sobre nós o que for, só pode dizer sobre nós aquilo que, de nós, está sob sua propriedade e que, historicamente, ele vem tentando, através de sua lógica supremacista e da relação sujeito x objeto, forjar enganosamente como próprio de si. Desta forma, é preciso que nos mantenham sempre sobre sua propriedade, para que possam dizer de nós não aquilo que é próprio de nós e que só a nós cabe dizer com legitimidade, mas para reafirmar os signos da propriedade que eles mantém sobre nós como se fossem, esses signos, aquilo que é próprio da nossa condição. É preciso, ainda, fazer de tudo para esconder essa relação dialética e material e reafirmar como verdade a sua supremacia através da relação sujeito x objeto, para que não percebamos essa estratégia perversa e acreditemos que toda a ideia que homens fazem de nós a partir de sua propriedade é mesmo o que é próprio de nós. E é isso que o transgênero-liberal, em sua prática e teoria transativista, faz.

É isso que estamos afirmando quando apontamos que mulheres são OBJETOS masculinos. Não apenas estamos reafirmando que eles nos tratam, no dia a dia, como se fossemos coisas, nos desumanizam, nos ferem e violam por nos creem sua propriedade, mas, também, o sentido mais fundamental dessa relação entre o SUJEITO (sexo masculino) e o OBJETO (sexo feminino): a epistemologia destas relações, a EPISTEMOLOGIA PATRIARCAL.

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* O termo "trangênero-liberal" foi cunhado pela pesquisadora Alicia Miyares na necessidade de evidenciar os fundamentos liberais e pós-modernos em que se ficam as raízes epistemológicas das práticas e teorias de transgeneridade e transexualidade. Para saber mais sobre os estudos de Miyares você pode assistir a série de vídeos gravados no seminário da Escuela Feminista Rosario de Acuña.

Imagem retirada do site Rádio FMZ em matéria sobre concurso de "piranhas" do carnaval do ES.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

OS PROSTITUINTES E A PROSTITUIÇÃO

Existem pesquisas [estou buscando esses dados, em breve linkarei aqui] que apontam que mais de 90% das mulheres que entram na situação de prostituição o fazem por falta de escolha, levadas pela pobreza e baixa escolarização. Existem pesquisas que apontam que mais de 80% dessas mulheres deseja SAIR da situação de prostituição.

Que tipo de feminismo escolhe ignorar o apelo de mais de 90% de mulheres, em sua grande maioria negra e muito pobre, e opta ppr selecionar uma minoria de 10% de mulheres brancas e em boa situação que afirmam que estão na prostituição por escolha, e elege essas mulheres como representativas das condição prostituída para pautar um discurso de que prostituição é sinônimo de liberdade sexual, empoderamento e que precisa ser reconhecida como profissão?


Vocês não podem acreditar que ignorar 90% de um contingente de mulheres miseráveis e violadas pra atender os apelos de 10% de mulheres brancas e em boa situação pode ser feminismo, vocês acreditam? A quem o discurso de defesa da prostituição favorece? A quem ele traz mais benefícios? Quem é o verdadeiro interessado na prostituição das mulheres?

OS PROSTITUINTES. Homens. Cafetões e consumidores que creem, há mais de dois mil anos, que o acesso ao corpo e ao sexo feminino e a exploração sexual de mulheres é um direito inalienável dos homens.

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Imagem retirada do ensaio fotográfico sobre a vida em uma casa de prostituição em Bangladesh, disponível aqui.

SÍNDROME DE ESTOCOLMO E SOCIALIZAÇÃO FEMININA

Existe um mecanismo de sobrevivência exclusivo de mulheres em sociedades patriarcais. Um mecanismo desenvolvido após milênios de sujeição de mulheres à violência masculina, que é engendrado na força dessa civilização e começa a ser acionado em nós ainda na infância, quando começamos a receber e a introjetar os códigos de nossa socialização:

Quando uma mulher identifica um indivíduo do sexo masculino, independente da forma como ele esteja vestido, de sua aparência física ou da de marcas e signos das diferentes tradições culturais e/ou regionais que ele possa carregar em sua aparência, quando uma de nós identifica nessa pessoa o sexo masculino, e isso se dá fundamentalmente pela identificação de um órgão sexual masculino, que é, justamente, o simbolo máximo do poder nessa sociedade e aquilo onde reside simbolicamente nosso temor, pois que é a marca do que nos violenta, o sexo da diferença, o sexo que não é o nosso, o sexo que, historicamente, nos domina, nos submete e nos viola. Quando o identificamos o sexo masculino, imediatamente é acionado em nós o alarme do risco iminente, o alarme da sobrevivência. Nesse momento, imediatamente nós passamos a demonstrar idolatria e/ou adoração a esse indivíduo e aos de suas classe e nos docilizamos frente a ele, as suas ideias, palavras, a seus gestos e produções; fazemos isso como os animais desumanizados que aprendemos que somos, nós damos sinais da nossa domesticação, pois assim eles, há milênios, nos mostram que é a única possibilidade que temos de que eles nos concedam o direito à vida. E assim fazemos porque as que vinham antes de nós já faziam, e assim aprendemos a fazer desde pequenininhas.

Isso é a socialização feminina. Isso é ser mulher. Nenhuma pessoa nascida com pênis vivência essa condição.


"Adoration" - Obra de Jan Saudek, mais um macho misógino nojento superestimado pelo patriarcado

SOBRE HOMENS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Existe um modus operandi de agressores, muito provavelmente todas já ouviram falar nos ciclos de abusos, né? Aquela coisa que o cara começa com pequenas violências emocionais, como censurar a roupa, futucar o celular, vigiar a pessoa, depois vai se tornando mais violento, vem os gritos, as violências verbais, a postura corporal intimidadora, as ameaças, aí a mulher chora, diz que vai terminar, quer ir embora, o cara promete melhorar, fica legal por um tempo, o relacionamento fica de boa, até que as violências começam de novo, sempre de maneira progressivamente mais intensas, o cara já empurra, puxa pelos cabelos, joga objetos, ameaça de bater, a mulher diz que vai terminar, ele promete mudar, fica de boa um tempo e, então, começa tudo de novo, agora ele já dá uns tapas, depois uns socos, depois espanca, e o final a gente sabe: esse cara um dia MATA a mulher.

Esse ciclo é real, já foi observado em estudos sobre a violência doméstica, é descrito em trabalhos acadêmicos e estudos sobre o tema e sobre a saúde da mulher. A morte, quando a mulher não consegue romper e sair, é praticamente uma certeza.

Essa é uma situação que frequentemente nos leva a crer que homens dão indícios de violência, e que se a mulher observar atentamente, ela pode sair da situação ainda no início e se livrar de violências mais pesadas e até da morte. E isso é um fato, não pode ser negado, mulheres estejam atentas e sejam fortes pra romper o ciclo logo no inicio e dar um pé na bunda desses miseráveis.

Agora, tem uma coisa sobre a qual ninguém fala. Que esse não é o único modo de manifestação da violência doméstica, da violência do homem contra as mulheres de seu convívio. Existem os que matam (ou tentam matar) sem dar nenhum sinal. ABSOLUTAMENTE NENHUM. Tenho observado cada vez mais relatos de sobreviventes ou de familiares das que morreram afirmando que o agressor nunca tinha sequer levantado a voz pra mulher. Que era um sujeito carinhoso, bom marido, bom pai, que nunca havia manifestado violência e, movido pelo sentimento de poder e propriedade e contrariado nesse sentimento por algo que viu ou desconfiou, numa crise de possessividade, tramou a morte da mulher e executou seu plano. As sobreviventes afirmam: uma pessoa que eu confiava, com quem dividi a vida, que jamais esperava fazer uma coisa dessas.

Poizé, amigas, eles fazem. Eles fazem porque podem, porque sabem que podem, porque a sociedade os autoriza a fazer. Com ou sem indícios e sinais anteriores, os homens matam as mulheres quando querem. Todo e qualquer homem pode fazer isso, já vimos que não há garantias.

Agora eu pergunto a vocês: sabendo que não há garantias, vocês são capazes de confiar plenamente em um homem? Viver sob o mesmo teto, relaxar e dormir ao lado dele, virar as costas pra ele numa situação de tensão, contrariar ele e seus gostos? Como vocês conseguem confiar suas vidas a homens sabendo que, embora nem todos façam, você não tem garantia alguma se o que divide a vida contigo não seria capaz de fazer?

Vocês não sentem MEDO?

Eu senti esse medo durante todo período da minha vida em que me relacionei com homens, em algum momento de todos relacionamentos que vivi com homens esse medo surgiu. Mas eu aprendi a ignorá-lo. Eu aprendi a achar que isso era loucura e exagero e achar que o normal é botar minha vida em risco em nome do "amor". Mas esse medo não é exagero e nem loucura, é autopreservação, que a realidade das mulheres jogada todos os dias na nossa cara através das noticias de estupros, espancamentos e feminicídios nos ensina e que o patriarcado nos impele a questionar e negar. Mas eu posso dizer sem hesitar que eu senti esse medo, que ele sempre me acompanhou, embora eu não desse muita atenção a ele.

Agora, no entanto, eu aprendi a ouvi-lo, eu não nego mais meu instinto de sobrevivência e autopreservação, e eu sinto uma autoestima e um amor próprio imenso porque em vez de ignorar esse medo, questionando minha razão e minha sanidade, eu o cultivo, justamente com base nelas e na observação da nossa realidade cotidiana.

E eu recomendo a todas: ouçam seus medos, ouçam seus próprios chamados.


Imagem retirada do texto A ausência do termo "feminicídio" na mídia, do blog do Coletivo de Jornalistas Nísia Floresta

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E O PATRIARCADO

A opressão das mulheres é sexual e não por gênero.

A emancipação econômica das mulheres é muito perigosa pro patriarcado, porque ela inicia seu desmantelamento a partir de um de seus principais pilares (ou fundamento), que é a DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO, umas de suas premissas mais fundamentais, que coloca mulheres em relação de servidão no espaço doméstico para que fiquem em dependência emocional e material do homem e creiam que lhes servir de sexo, trabalho doméstico e conceber seus filhos seja uma obrigação dela ao homem que lhe provê e, supostamente, protege.

Por isso é importante pro patriarcado desestimular mulheres de trabalhar, fazer de tudo para mantê-las longe do trabalho: responsabiliza-las e culpa-las pela maternidade, pagar menores salários, assediá-las moral e sexualmente, sobrecarrega-las nas tarefas domésticas, etc.

A Divisão Sexual do Trabalho é um dos fundamentos organizadores de nossa sociedade, de TODAS a sociedades patriarcais. É o que as organiza e permite que elas existam historicamente, perpassando o tempo e diferentes espaços, de maneira a fortalecer homens psíquica, politica e materialmente, para submeter e dominar mulheres e seguir existindo. A Divisão Sexual do Trabalho opera no SEXO e não no gênero, porque ela necessita que as capacidades reprodutivas das mulheres estejam sob controle de homens e de instituições masculinas. É pra fazer esse controle que os homens instituem os interditos, as proibições, a desmoralização e demonização do sexo e do corpo feminino e de tudo que é relativo a ele, a vulva, a vagina, a menstruação, a desmoralização e a violação sobre o exercício saudável da sexualidade feminina, a maternidade compulsória e o veto ao direito ao aborto, a heterossexualidade compulsória e a perseguição à sexualidade lésbica, o controle dos corpos femininos por meio de padrões de beleza inatingíveis, o estupro como ameaça constante à s possíveis insubmissões femininas a esse aparelho de controle.

Por isso não adianta apenas reivindicar salários mais altos, o fim do assédio, a justa cooperação nas atividades domésticas, apenas superficialmente, se não formos à raiz, aos fundamentos que sustentam essas estratégias. Sem combater os fundamentos, as origens das estratégias que nos aprisionam, o patriarcado se reinventa, se reelabora, ou, quando convém, nos retira os direitos já conquistados.

Por isso afirmamos que o SUJEITO do feminismo é o sexo feminino, a quem esse sistema de opressão é direcionado e o único capaz de protagonizar a luta, combate e resistência à opressão e à exploração que vivencia sobre seu corpo e seu sexo. O sujeito do feminismo só pode ser o sexo feminino porque, em qualquer luta contra qualquer opressão somente quem a experimenta é capaz de conhecê-la profundamente e engendrar coletivamente sua emancipação e libertação. Nenhuma pessoa do sexo masculino, por mais que sofra em circunstância adversas de violências engendradas por nossa sociedade, experimenta o patriarcado enquanto sistema de opressão e exploração sexual que ele é, portanto, não poderá jamais ser sujeito e protagonista de um movimento que visa a emancipação do SEXO FEMININO e da servidão e exploração históricas ao qual ele vem sendo submetido. Qualquer outra categoria de pessoas que não seja o sexo feminino e pleiteie-se como sujeito ou protagonista do feminismo é um COLONIZADOR, pois deseja se apropriar de um movimento cujas opressões ele não vivencia e, portanto, cujas pautas não pode protagonizar, para impor a esse movimento pautas que não deveriam ser dele, no intuito de pulverizar e promover o apagamento das pautas centradas na condição histórica da opressão do sexo feminino.

Lembrem-se: nossa servidão, nossa dominação, exploração e opressão é pelo sexo! O gênero é um desdobramento disso e não a causa de nossa opressão.