domingo, 11 de março de 2018

PROSTITUIÇÃO É ESTUPRO

Se você não consegue enxergar o quão desumanizante a prostituição é, se você não consegue conceber que ela é algo tão violento e violante para a condição feminina, a tal ponto que a existência da ideia de que homens têm o direito de comprar o sexo feminino não deveria sequer ser concebida, se você não consegue enxergar isso e acha que pode haver algo empoderador ou ou libertador na prostituição, no direito de homens comprarem o sexo feminino, se você defende que a prostituição poder ser empoderadora ou libertadora das mulheres, você ainda não entendeu que mulheres são seres humanas, que mulheres são HUMANAS. Você ainda não realizou isso na sua cabeça, na sua cognição, no seu pensamento e na sua linguagem, você acha que mulher é coisa, é objeto, é um troço que existe pra servir a homens, bastando que eles comprem seu consentimento - quando consentimento não pode ser comprado, e quando isso acontece isso se chama ESTUPRO.

E isso é ainda mais desesperador quando você, que defende que pode haver alguma liberdade na ideia de que existe alguma circunstância especial e libertadora para mulheres na ideia de que homens têm direito comprar nossos sexos, é ainda mais desesperador quando você pensa isso e também é uma mulher.

As relações entre homens e mulheres nunca serão "normais", porque são fundadas na desigualdade, qualquer relação entre homens e mulheres no patriarcado parte desse lugar social da desigualdade, ela é fruto de uma sociedade sexualmente hierarquizada, que concebe homens numa posição superior a das mulheres, em que homens são humanos e mulheres são um subproduto da humanidade masculina. A prostituição só pode existir e ser concebida a partir dessa hierarquia, criada por homens, e que estabelece a supremacia do sexo masculino sobre o feminino - nenhuma outra sociedade, a não ser a patriarcal, conceberia que podem haver circunstâncias especiais em que é digna a ideia de um ser humano do sexo masculino comprar o corpo e o sexo de outros seres humanos. Logo, a naturalização da ideia de que haverão circunstâncias especiais que legitimam a prostituição (como a de que é possível que mulheres é que "decidam" ou "escolham" em que circunstâncias a prostituição é libertadora ou não ou que elas é que decidem "se sentem" empoderadas ou não pela prostituição) é uma ideia patriarcal, baseada na noção individualista e liberal que coloca as percepções individuais acima dos significados coletivos dos processos históricos que estruturam a economia e funcionamento da sociedade patriarcal-liberal. A ideia de que pode haver alguma circunstância em que homens terão direitos a nossos corpos é uma ideia totalmente patriarcal.


Mulheres são frequentemente apontadas como "interesseiras" ou "aproveitadoras" quando, ao reproduzirem seu papel sócio-sexual de inferior, dependente, subjugada e explorada pelo sexo masculino, em alguns aspectos dessas relações desiguais, em sua luta pra sobreviver à exploração e ao subjugo, elas aparentemente tiram dessas relações algum "proveito" material ou simbólico.

Mas a verdade é que nenhum proveito ou benefício há, para mulher, em relações fundadas na desigualdade. E, portanto, não há nelas nenhuma liberdade ou empoderamento. A prostituição/estupro é o fundamento dessas relações desiguais entre homens e mulheres, e o fundamento da prostituição/estupro reside no fato de que, historicamente, a dominação do sexo masculino sobre o feminino se deu, originalmente, quando os homens expropriaram das mulheres os seus meios de sobrevivência (não somente os instrumentos de cultivo da terra, de colheita, de trabalho, mas, também, seu corpo, seu sexo, sexualidade e capacidades reprodutivas)  subjugando o sexo feminino e convertendo fêmeas humanas em mulheres ao convencê-las que, por serem inferiores aos homens, deviam a eles temor e subserviência, pois que, expropriadas de meios de subsistir, encarceradas no espaço doméstico e reduzidas a incubadeiras dos herdeiros do macho, sua subjetividade, autoimagem, autocompreensão sobre si e sobre o que é ser mulher, é forjada na sua própria servidão, inferiorização e dependência em relação ao sexo masculino. 

Junto com o sequestro de seus meios de subsistência, toda humanidade da mulher também é sequestrada pelo sexo masculino, agente e sujeito do processo de limitação, redução e exploração da fêmea humana.

Nesse processo de expropriação, de desumanização, de empobrecimento, o corpo e o sexo feminino são convertidos, pelo homem, em moeda. Isso acontece para que, expropriadas, subjugadas, desumanizadas, empobrecidas, as mulheres temam constantemente o medo do estupro e cedam ao casamento (o contrato social de promessa que os homens fazem de nos proteger da violência que eles mesmos perpetram contra nós e de nos prover da pobreza que eles mesmos nos causam). Às mulheres que se recusam ao casamento (lésbicas, rebeldes, insubordinadas), a proteção dos homens por meio do casamento é vetada: como mulheres passíveis de terem seus corpos acessados por todos os homens (já que abriram mão de ser propriedade de um único), resta a violência absoluta, o espancamento, a miséria e a morte, ou a aceitação da seguinte oferta: seus corpos disponíveis para todos os homens mediante a um simbólico pagamento, ou seja: a aceitação da conversão de seus corpos e sexo à mercantilização negociável entre todos os homens. Isso se chama estupro, esse é o fundamento mais enraizado da prostituição. Essa é a dimensão social e histórica do estupro, da prostituição, é o lugar de sua gênese. Essa dinâmica é o fundamento da prostituição, que serve, portanto, ao mesmo tempo, como instrumento de controle social das mulheres prostituídas por todos, visto que sua subsistência continua subordinada aos homens, que negam-lhe trabalho, terras e acesso à produção ao mesmo tempo que (não interessando aos homens a morte delas) convertem seus corpos em mercadoria, condicionando a subsistência delas a submissão ao estupro mediante pagamento, e das mulheres que serão exploradas e dominadas pela heterossexualidade e pelo casamento pelo temor histórico e visceral da violência delegada às que se insubordinam. O pagamento pelo estupro, que não as deixa um determinado contingente de mulheres prostituídas morrer de fome, existe para que permaneçam vivas e sirvam de exemplo, em toda sua miséria, servidão sexual e vitimização, a todas as mulheres, para que todas as mulheres não se rebelem contra o casamento, a servidão doméstica, à maternidade compulsória, à heterossexualidade, contra o contrato que as converte em propriedade de um único homem, pra mostrar a elas que a alternativa a isso pode ser ainda muito pior. 

Esse é o fundamento da prostituição: expropriada e destituída por homens de qualquer forma de sobreviver, recusando (ou impedidas de acessar) o casamento como forma de receber proteção e proveção masculina contra a violência e a miséria que eles mesmos causam às mulheres, seu sexo é convertido por homens em mercadoria para que ela continue no subjugo masculino e ainda sirva de exemplo a outras mulheres.

E como não podia deixar de ser, todo esse processo de origem das relações de prostituição precisa ser apagado, o verdadeiro sentido da prostituição vai sendo apagado pela História escrita pelos homens, pela Arte e pela Literatura produzida pelos homens, pela Filosofia, Sociologia e por Teorias produzidas por homens... durante toda história das sociedades patriarcais, os homens, em suas práticas e discursos, emprenham-se para dar outros significados pra prostituição, para que seu significado mais fundamental e mais verdadeiro seja esquecido, seja apagado. Mas esse significado ressurge, vez ou outra, na história, pelos discursos de mulheres, pelas memórias das mulheres, pelas falas e vivências das mulheres, esse significado ressurge porque é real, porque ele é fruto da violência e da dominância masculina, que os próprios homens não conseguem esconder. Por isso, mesmo com todos discursos falseados sobre a prostituição pra esconder seu verdadeiro caráter, seu sentido mais fundamental, os homens não conseguem esconder totalmente seu verdadeiro significado, porque ele reside e nasce e renasce na própria violência masculina, real e iminente em toda sociedade patriarcal: prostituição é a DEGRADAÇÃO das mulheres pelos homens. 

Não se enganem: esse é o verdadeiro sentido da prostituição. Num sistema patriarcal em que mulheres são forjadas como gênero (o gênero não é natural, o gênero é a própria desigualdade) a partir da expropriação de seus meios de subsistência e que, portanto, não são sujeitas de si, de suas histórias, narrativas e direitos, a prostituição é muito menos sobre o "direito" de mulheres venderem seus corpos e muito mais sobre o direito dos homens de comprá-los. E os homens farão de tudo para que não enxerguemos isso, para que a gente não se dê conta disso, eles irão, inclusive, tentar nos convencer que o direito que eles estabeleceram sobre nossos corpos seria, na verdade, uma liberdade pra nós - e buscarão aliadas entre nós pra defender esse direito e nos mostrar que eles estão certos. Não caiam nessa.

A JUSTIÇA FALOCRÁTICA

A justiça patriarcal é feita pra humilhar e punir qualquer mulher que ouse levantar a voz contra as agressões masculinas. Pra violar reiteradamente qualquer mulher que ouse sair do lugar de sujeição e silêncio que o patriarcado nos reserva.

A justiça patriarcal é, ao mesmo tempo, uma realidade e uma metáfora; uma realidade perversa que humilha e agride a mulher e uma metáfora de estupro. Um estupro simbólico pra mostrar a algumas mulheres que elas foram longe demais, que elas precisam recuar, pra colocá-las novamente de joelhos frente a seus agressores cada vez que elas ousam se erguer, pra colocá-las novamente de joelhos e obrigá-las a se retratarem, a se desculparem, por narrarem as violências que sofrem, por romperem com o silêncio que historicamente nos tem sido imposto. É um estupro simbólico, que viola a mulher em sua dignidade, em sua moral, em seus valores mais íntimos, em sua existência, é um estupro corretivo pra nos mostrar que fomos longe demais ao tornar pública uma agressão de um homem contra uma mulher, porque essas agressões devem permanecer nas esferas privadas, das relações intimas ou do silêncio e do medo, porque é direito do homem agredir uma mulher e é direito dele ser poupado e protegido da reação dela. E se a mulher viola um direito do homem ela vai ser humilhada e punida.

Qualquer mulher que ouse não se calar diante da violência de um homem será humilhada e punida, pra que entenda que deve recuar e pra servir de exemplo para outras.

É isso que acontece nas salas trancadas dos tribunais patriarcais, nos chamados Tribunais de Justiça.

A espada está erguida. A justiça é concebida pelo e para o falo.


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

FEMINILIDADE NÃO É PERFORMANCE II

Observatório do buzão.
(Reflexões no transporte coletivo a caminho do trabalho)

Imaginem um homem chegar numa entrevista de emprego ou em seu primeiro dia de trabalho numa empresa com roupas bem justas que mostrassem bem a forma do seu corpo, inclusive a delineação de seu órgão sexual, peitoral e até mamilos, com a cara toda pintada, lábios, olhos e maçãs do rosto, de forma a simular um constante estado de excitação e disponibilidade sexual ou, ainda, olhos e cílios artificialmente aumentados, gestos e empostação vocal débeis, simulando uma vulnerabilidade infantil, roupas de babadinhos, de coraçõezinhos, bichinhos, imitando a indumentária de uma criança, agora ceis imaginem se esse macho ia ser respeitado ou credibilizado por sua competência profissional?

Das mulheres é esperado que, além de alguma competência no trabalho (isso não é o requisito principal pra conseguir o emprego) elas sinalizem aos homens que estão vulneráveis e sexualmente disponíveis, ou seja, que são prostituíveis, que sua prostituição está inclusa nas relações de trabalho. Elas precisam informar aos homens que dominam o mercado de trabalho que, mais do que ter competência profissional, que elas aceitam essa condição. Se não aceitar, você pode ter a melhor formação do mundo, você não tá empregada - vide lésbicas que não se conformam aos padrões estéticos de feminilidade e não conseguem empregos.

Feminilidade não é sobre sentimentos masculino acerca de batons, maquiagens e vestidos. Feminilidade não é sobre como alguns homens se sentem bem e realizados quando experimentam adereços e rituais criados para controlar, manipular, subjugar e explorar os corpos e subjetividades do sexo feminino. Feminilidade é sobre a hierarquia sexual que ordena a sociedade, é sobre a servidão do sexo feminino ao sexo masculino. Isso é ser mulher.


FEMINILIDADE NÃO É PERFORMANCE

Feminilidade é uma violência tão fundamental, tão fortemente introjetada na gente, impressa na carne e na subjetividade das fêmeas humanas, do sexo feminino, que sequer conseguimos conceber a nossa existência sem ela. Feminilidade não é sobre vestidos, sapatos, gestuais, maquiagem, feminilidade é sobre submissão, é sobre a profunda domesticação do sexo feminino - os estereótipos de gênero são só o nível mais aparente da feminilização. Feminilidade sobre um nível tão profundo, tão estrutural, tão fundamental, de submissão que faz mulheres erotizarem e desejarem a sujeição ao macho, que faz mulheres engravidarem compulsoriamente tentando (em vão) seu reconhecimento de humanidade, que faz a mais caminhoneira das lésbicas desejar aprovação e reconhecimento de homens e da sociedade patriarcal. Parem de usar a linguagem do opressor e ajudar a esvaziar o sentido do conceito e da prática violenta de feminilização de seres humanas do sexo feminino.

Não existem mulheres que "performam" e mulheres que "não performam" feminilidade, numa sociedade patriarcal TODAS as mulheres são atingidas pela feminilização em algum nível, porque feminilidade não é performance, feminilidade é violência conformadora de mulheres. Feminilidade é sobre a sujeição do sexo feminino ao sexo masculino. 

FEMINILIDADADE NÃO É PERFORMANCE, É VIOLÊNCIA CONTRA O SEXO FEMININO!


quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

"TODO HOMEM É UM ESTUPRADOR" NÃO É UMA GENERALIZAÇÃO QUE COMPORTA EXCEÇÕES,

MAS É, SIM, UMA VERDADE DENTRO DA CULTURA PATRIARCAL.

Quando algumas feministas afirmam que TODO HOMEM é um estuprador, essa sentença percorre, no geral, três caminhos interpretativos dentro do próprio feminismo (e da sociedade):

1. Há aquelas mulheres que, com o pavor imposto pela socialização feminina de não receberem o reconhecimento e a garantia de humanidade prometida pelos homens às mulheres de "bom comportamento" e às "boas" feministas, e reproduzindo piamente o típico discurso desesperado de homens quando são descobertos fazendo suas perversidades, elas se indignam junto com eles com o "absurdo" de fazer uma "generalização" dessas, porque "nem todo homem" e "não precisa generalizar", e rechaçam completamente qualquer possibilidade de se refletir a partir dessa sentença e compreender seu significado dentro da patriarcado. Não há possibilidade de diálogo e nem de produção de saberes e conhecimentos feministas com essas mulheres sobre esse assunto, elas não cederão à possibilidade de desagradar à lógica masculina.

2. Há aquelas que, não temendo desagradar à maioria dos homens, mas, também, não querendo desagradar a todos eles e romper definitivamente com toda e qualquer possibilidade de aprovação masculina, esperando, ainda, o reconhecimento e a aprovação de um grupo seleto de homens, os entendidos por elas como mais "desconstruídos", os "de esquerda" ou, simplesmente, os "caras legais", essas entendem a necessidade da generalização da sentença, dentro de um contexto estrutural que coloca homens enquanto classe/grupo/casta e generaliza a partir deste lugar, embora possa caber nele também o que elas e os tais machos desconstruídos/esquerda/legais - por ser justamente o que eles reivindicam para si mesmos - chamam de "exceção", ou seja, homens que não cabem na generalização porque nunca estupraram uma mulher, mas que são irrelevantes dentro de uma análise estrutural porque, obviamente, esta se falando de uma "estrutura", do "geral" e não das tais exceções. Há possibilidade de construção de diálogo e de conhecimento com essas mulheres, mas ela é limitada, geralmente ela estagna quando uma das premissas mais fundamentais do feminismo - "O pessoal é político" - vem à tona e o assunto se desdobra sobre suas vidas pessoais, suas experiências, suas histórias e sobre os homens de seu afeto.

3. Há aquelas que caminham de maneira geralmente consciente e deliberada (sabendo de toda a dificuldade e limitações inerentes a esse processo, mas dispostas a encará-las e construir, dentro do possível, suas vidas pautadas nisso) para a ruptura com toda e qualquer necessidade de aprovação e reconhecimento de todo e qualquer macho e sentenciam que não há nenhuma exceção na generalização e que homens são, sim, todos estupradores - NÃO HÁ EXCEÇÕES. Essas mulheres, no geral, são as feministas lésbicas, e há um extenso e profundo diálogo entre elas sobre essa sentença e suas implicações na história e na vida das mulheres e em toda história e prática das sociedades patriarcais. Não há limites para a produção de compreensões sobre o quão perversa pode ser a lógica patriarcal, o falocentrismo e a cultura e a prática política, social, parental, afetiva e erótica hierarquizada do sexo masculino sobre o sexo feminino.

Geralmente, os homens - e muitas mulheres heterossexuais também - odeiam muito essas mulheres (as lésbicas) e se recusam dar a aprovação e reconhecimento masculinos aos seus pensamentos, reflexões, falas, suas teorias e narrativas, suas subjetividades e criações artísticas, a seus feminismos e, até mesmo, as suas existências, como válidas, humanas ou coerentes e dignas de serem ouvidas, compreendidas, ecoadas. Por isso, lésbicas e, mais recentemente dentro da História, as lésbicas feministas, são as mais perseguidas, silenciadas, apagadas; por isso, dentro da História, da Literatura, da Ciência, dentro do próprio feminismo, enfim, dos registros humanos que narram e dão significados ao mundo, as memórias, as produções, as narrativas, compreensões, teorias e registros de lésbicas sobre sua própria condição e sobre seu modo de compreender o mundo e as sociedades patriarcais são escarnecidos, vilipendiados, amaldiçoados e aniquilados. E por isso, também, em tese, seria muito difícil pra uma mulher heterossexual mover seu pensamento, sua compreensão e até mesmo sua prática erótica e afetiva até esse ponto, até o ponto de compreender e aceitar profunda, radical e verdadeiramente que todos os homens são estupradores e, mesmo assim, conseguir continuar se relacionando afetiva e eroticamente com eles. É muito difícil e doloroso esse processo, sobretudo porque a gente, individualmente, está envolvida nele e constituída por ele: a vida toda, faz parte de quem a gente é, ser vítima dos estupros e dos estupradores que amamos - e reconhecer e aceitar isso radicalmente significa uma dor e um desterro imensos, causados por uma ruptura sem igual, muito profunda e radical, com o mundo, com o passado, com que somos, ou, mais precisamente, com quem fomos até aí.

Dito isso, retomando o tema central desse texto, o da possibilidade de se duvidar de que todos os homens sejam mesmo estupradores ou se haveriam as exceções* eu deixo uma pergunta então: levando em consideração que estupro é qualquer forma de coação, física, moral, psicológica, patrimonial, material, simbólica, subjetiva, com uso de força física ou não, que um homem aplique contra uma mulher para obter o coito, vocês conhecem algum homem na face da Terra que nunca tenha forçado coito com uma mulher embriagada, entorpecida ou adormecida; coagido namoradas jovens e inexperientes ou emocionalmente e psicologicamente adoecidas ou dependentes ao coito por meio de chantagem ou manipulação com promessas de bens materiais ou cobranças de ordem moral, afetiva ou emocional até conseguir obter o coito; que tenha ignorado um "não", uma aparente indisposição ou falta de interesse da mulher na relação sexual e seguido o coito sozinho no corpo da mulher sem, entretanto, a participação ativa e o consentimento efetivo dela; oferecido dinheiro a uma ou várias mulheres prostituídas pra obter o coito; se aproveitado à força, agarrando, sarrando, tocando uma mulher sem seu consentimento tentando obter o coito ou prazer sexual do corpo dela? Você conhece algum homem que NUNCA tenha tido NENHUMA dessas atitudes sequer? Porque se ele teve ao menos UMA dessas atitudes, uma única delas, ele É UM ESTUPRADOR. E se ele se preparou pra fazer, tentou fazer, começou a fazer e não logrou êxito, porque foi impedido por circunstâncias externas quaisquer, seja por agentes da lei, por outra pessoa ou pela própria mulher, ele também É UM ESTUPRADOR.

E ter se transformado num cara de esquerda desconstruído, ou num bom samaritano qualquer, e ter se arrependido de ter feito não faz o cara deixar de ser um estuprador - só faz o cara tentar convencer os outros que não fará mais (o que também é duvidável, porque a ideia de que mulheres devem o coito a homens é tão naturalizada por eles que eles vão exercitá-la por toda a vida, naturalmente, como se fosse um impulso natural esperar isso delas, eles vão fazer isso, seja com violência mais direta, seja de maneira mais subjetivas.

Por isso, eu digo, sem pestanejar: TODOS, eu disse T-O-D-O-S os homens já cometeram ou tentaram cometer alguns desses atos contra mulheres. TODOS. Nossos irmãos, tios, avós, pais, amigos, maridos, namorados. TODOS. Não há exceção.

Eu não tenho medo de dizer que TODOS os homens já estupraram alguma mulher na vida. PORQUE ISSO É A CULTURA DO ESTUPRO e todos os homens praticam a cultura do estupro, porque ela é natural pra eles.




*A justificativa da exceção serve para que possamos, nós, mulheres, sempre pensar que há um contingente de homens livre da acusação do estupro e que esses seriam, obviamente, os homens que amamos. A "exceção" é, portanto, o lugar em que as mulheres depositam suas esperanças no sexo masculino e, ainda mais: é a negação de suas próprias histórias. É a esperança da redenção de suas próprias experiências de violência com os homens, na desesperada tentativa de não se sentirem culpadas, de não sentirem o peso que o patriarcado deposita sobre nossas costas nos culpando por cada um de nossos estupros, desde o mais incisivamente violento ao mais naturalizado deles, as mulheres precisam acreditar que "nem todo homem", porque se "nem todo homem é um estuprador", nem sempre ser mulher será uma experiência forjada a partir do estupro.