quarta-feira, 29 de março de 2017

TROCANDO UMA IDEIA SOBRE A CONDIÇÃO LÉSBICA

Esse texto surgiu de uma recente conversa com uma leitora nos comentários de um dos posts desse blog, então eu quero agradecer à Mulher em Luta do Feminismo Radical Negro e Anarquista pela interlocução que fez mover meu pensamento. :)

Bem, como disse à ela, eu digo aqui de novo: eu não tenho certezas rigorosas sobre essas questões, então o que vou compartilhar aqui com vocês são reflexões e ensaios de pensamentos, minhas queridas filhas de Safo, as herdeiras de Valkírias, Amazonas e Icamiabas. <3

Pra começar, eu acredito que apesar de lésbicas reproduzirem [algumas mais fortemente que outras] modelos e padrões heterossexuais de relacionamento, nosso lugar na sociedade heterossexual é muito radicalmente diferente dos papéis heterossexuais, então eu já concordo com a crítica que muitas de nós fazem sobre usar termos heterossexuais pra definir a nós e a nossos relacionamentos, termos como "lésbicas masculinizadas", "femmes", "relacionamentos abusivos". A gente sempre foi narrada e definida (a nossa história, assim como a nossa condição) pela linguagem e pela racionalidade patriarcal (são elas que conferem inteligibilidade a nossa existência no mundo e para nós mesmas) e não nos tem sido permitido acessar a nossa história, a história da existência e da resistência lésbica no processo de desenvolvimento das sociedades no tempo e no espaço, senão, e ainda sim muito pouco, pelo viés patriarcal; dessa forma, sem conhecer nosso passado, dificilmente seremos capazes de nos significar a nós e a nossas experiências, politicas, afetivas, sociais, a partir de nós mesmas, de nossos referenciais, no presente, e sempre estaremos dando sentido as nossas existências através dos significados que o patriarcado impõe sobre nós.

Nessa perspectiva, não nos são oferecidas muitas alternativas a não ser reproduzir/desdobrar esses sentidos nas nossas experiências materiais para que possamos existir materialmente através do sentido que tem sido dado as nossas existências (pois é impossível existir fora de qualquer sentido), e dificilmente sairemos desse ciclo de nos significar com os sentidos patriarcais e moldar nossas vivências a eles para que tenham sentido (não sei se estou sendo clara, me digam, pfv). Mas, ainda sim, a gente sabe que as vivências lésbicas extrapolam os sentidos patriarcais, justamente porque, numa sociedade falocrática, a construção de afetos e sexualidade ginocentrada é revolucionária, ainda que esforcem por encaixá-las e reduzi-las aos padrões heteronormativos. O que eu acredito é que a gente precisa liberar nossas experiências desses significados patriarcais e heterocentrados e perceber as nuances e particularidades que fazem com que relações lésbicas, por mais que se esforcem pra nos fazer crer que sim, elas não se encaixam nesses padrões heteropatriarcais. Lésbicas inconformes ao gênero não estão tentando se masculinizar, relações entre lésbicas inconformes ao gênero e lésbicas mais adequadas a ele não são nem de longe o mesmo que relações heterossexuais, problemas entre casais lésbicos, por mais violentos que possam ser, não tem o mesmo fundamento dos abusos enraizados na misoginia patriarcal que permeiam as relações heterossexuais - negar isso é apenas pautar a condição lésbica e a afetividade e a sexualidade lésbica de um ponto de vista hetero/falocentrado.

A gente precisa enxergar e significar as relações e a condição lésbica a partir de outros referenciais, cravados, enraizados, no nosso passado coletivo, na nossa própria história, nas nossas vivências, nas nossas próprias concepções de mundo, na nossa ética, na nossa estética e na nossa própria poética. É um trabalho enorme, mas a gente precisa começar a fazer. Um passo importante e fundamental pra isso é a gente recomeçar a escrever a nossa História, é a gente buscar o que já foi escrito, trazer isso à tona, buscar o que já foi produzido em termos de nossas memórias, sobre o nosso passado, é conhecê-lo, falar dele, escrever sobre ele, desdobrá-lo em literaturas, música, cinema, artes de todo tipo, em políticas, em sociabilidades, em conversas de bares, em afetos, enfim, fazê-lo presente na gente, no nosso corpo individual, mas, sobretudo, no nosso corpo coletivo. É a partir dele que a gente vai gerar os sentidos pra falar da nossa condição presente, pra entender porque há violência em relações lésbicas, porque ainda reproduzimos a heteronorma em nossas relações, pra entender onde conseguimos romper com ela e como fazer pra romper ainda mais... é a partir dos nossos próprios sentidos e significados que precisamos fazer isso, e não dos sentidos patriarcais, como historicamente temos sido impelidas a fazer desde sempre, pra continuarmos sendo limitadas a eles e pra nos mantermos, assim, sob seu jugo.

Olha, a gente precisa muito conversar sobre nós. A gente precisa se conhecer, falar sobre a nossa condição, sem parar o tempo todo. A gente precisa criar espaços exclusivos, debates, eventos, espaços de troca e de lazer, espaços lúdicos, a gente precisa ser, de fato, uma comunidade, em seu sentido mais pleno, com passado, com presente e com futuro. Enfim, com uma cultura e uma ética lésbicas.

E pra continuar (porque esse debate não pode parar,né?), eu vou compartilhar aqui nesse hiperlink esse texto ótimo que aponta de forma bem específica pra isso que tô falando aqui a partir do exame dos casos de violência dentro do próprio movimento organizado de lésbicas feministas. Recomendo que quem não leu, leia.

E vamos conversar. <3


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