quinta-feira, 14 de novembro de 2019

UM BLÁ COM BEAUVOIR

Existe uma experiência milenar, histórica, que perpassa épocas e culturas diferentes, e que é imposta exclusivamente a um grupo específico de pessoas, as nascidas no sexo feminino: a MISOGINIA.

A misoginia não é o ódio às saias, vestidos, saltos altos, maquiagens e nem a nenhum desses adereços e esterótipos que homens autoidenficados como mulheres optam por usar ou reproduzem pra afirmar sua identidade feminina. A misoginia é o ódio ao corpo das mulheres, a nossa genitália, a nosso aparelho reprodutor, ao SEXO FEMININO e tudo que é próprio dele e de seu desenvolvimento: útero, ovários, vagina, vulva, menstruação, secreções, hormônios, caracteristicas físicas, gravidez, maternidade, aleitamento. É com base na misoginia que fêmeas humanas são tornadas mulheres. "Mulher" é, ao mesmo tempo, o produto social da misoginia e, em cada corpo e subjetividade feminina, a tensão permanente entre a misoginia e a luta individual e coletiva pra se libertar dela.

Seja aqui, no Rio de Janeiro, no Brasil, em Pequim, Nova Delhi, Portugal, Maputo, Egito, Canadá, ou ali em Bangu, em qualquer lugar onde a sociedade estiver estruturada sobre a hierarquia SEXUAL do patriarcado (Patri = pai/homem e arch = hierarquia), ou seja, a hierarquia do SEXO masculino na posição superior e o sexo feminino na posição inferior, haverá a misoginia e "mulher" será sempre o produto social da ação real e material da hierarquia sexual sobre os corpos e subjetividades da fêmea humana. Independente das variações regionais e temporais das expressões da misoginia, que torna singulares a vivência de grupos e indivíduas mulheres de acordo com a época ou região em que nasceram e viveram, a misoginia é uma experiência compartilhadas por TODAS as mulheres. A misoginia é a força limitante e conformadora contra qual TODAS as mulheres resistem. A misoginia se desdobra sobre nossos corpos, nossas emoções, nossos afetos, nossos desejos eróticos, nossaq psiquê, nossa forma de conceber a nós mesmas, o outro e o mundo. As expressões da misognia mudam em cada época e cada lugar, mas a misoginia permanece forjando a condição feminina na história, no tempo, na dor, na vida e na morte, na resistência e na luta. As expressões da misoginia variam de acordo com a região, a cultura, o tempo histórico, mas a misoginia permanece massacrando os corpos e o sexo feminino, desde a infância até a velhice, pra nos desumanizar e nos transformar em mulheres - o subproduto da humanidade (do homem), o segundo sexo, o objeto do sujeito masculino. As expressões da misoginia são diversas, tantas quantas são as culturas humanas, mas o fundamento da misoginia permamence: o controle, domínio e domesticação do corpos femininos para a exploração do nosso SEXO, das capacidades reprodutivas das mulheres, a principal forma mantenedora de QUALQUER sistema de exploração: a capacidade de gerar novos senhores e novos escravos. As expressões da misoginia são diversas, tantas quantas são as culturas humanas e as épocas históricas, mas o fundamento da misoginia permanece: dele se desdobra a antiga tradição chinesa de mutilação dos pés das mulheres nos micro-sapatinhos, considerada um padrão de beleza, mas que, na verdade, impedia as mulheres de andar, correr, saltar e escapar de seus maridos agressores; a compra e venda de mulheres, através de dotes, pelo casamento, comum na Idade Média europeia e, ainda hoje, em algumas sociedades rigidamente patriarcais; a proibição do aborto pelo controle do Estado patriarcal sobre os corpos das mulheres e a violência da maternidade compulsória e das milhares de mortes femininas que disso decorrem; a mutilação genital de meninas e mulheres em alguns países de regiões que conhecemos como Oriente; a pedofilia, a exploração sexual de meninas e o casamento infantil, que leva meninas a servirem doméstica e sexualmente a homens velhos, a terem sues corpos e subjetividades tolhidos pela violência extrema contra as suas infâncias - situação em que o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial; a Divisão Sexual do Trabalho, que ordena a economia(*) patriarcal e capitalista, sustentando esses sistemas; os padrões estéticos e comportamentais, que tornam mulheres infantilizadas, incapazes, frágeis, objetificadas para servir ao erotismo masculino e alimentar a ideia geral do que é ser uma mulher e de qual seu papel na sociedade; o lesbo-ódio, que impede o sexo feminino de amar suas iguais e as impele, seja por violências materiais ou subjetivas, ao culto ao falo e à falocracia, à heterossexualidade compulsória; a prostituição, fundamentalmente feminina, que mantém a degradação da condição feminina por meio da ideia de que somos objetificáveis e mantém o exército de reserva de mulheres degradas e miseráveis, fundamental para a regulação da economia patriarcal; a pornografia, propaganda masculinista heterossexual, e seu sentido pedagógico patriarcal para a educação de novos patriarcas e novas submissas; 
os estupros, espancamentos, encarceramentos, a violência obstétrica... enfim, em todo mundo, por todas as épocas, as sociedades patriarcais se fundam na misoginia: essa experiência, ao mesmo tempo única e diversa, COMPARTILHADA por TODAS as seres humanas nascidas sob o signo do sexo feminino, e que nos faz MULHERES.

Nenhuma, eu disse NENHUMA, pessoa nascida no sexo masculino JAMAIS vai vivenciar a experiência compartilhada de ser mulher, de nascer, viver e ser corformada pela misoginia e resistir e lutar contra ela. Ser uma pessoa do sexo masculino que acredita que é uma mulher e quer convencer a todos que é uma mulher como outra qualquer e que, por isso, pode definir o que é ser mulher e pode ocupar os espaços conquistados pelas mulheres não é "uma forma diferente, entre tantas, de ser mulher", é apropriação, é colonização, é apagamento, é violência, é só mais a mesma misoginia masculina de sempre.

Nenhum feminismo "reduz" mulheres a seus úteros ou vaginas, quem faz isso é o patriarcado, através da misoginia, porque precisa, justamente, nos reduzir e nos desumanizar, pra manter o controle sobre nossos corpos e subjetividades e manter a coletividade das mulheres domesticadas e submissas diante do domínio masculino e da exploração das nossas capacidades reprodutivas. Nenhum feminismo é "biologizante" e reduz mulheres ao sexo, mas um feminismo que ignora ou nega que a condição e a definição do que é ser mulher passa obrigatória e fundamentalmente pela misoginia, pela experiência compartilhada de nascer num corpo feminino numa sociedade que odeia o sexo feminino, e que permite ao sexo masculino, que nunca experimentou e nunca irá experimentar a violência misógina sobre seu corpo e sua subjetividade, definir o que é ser mulher e o que é a condição feminina, é um feminismo que já foi atravessado pela lógica masculina, é um feminismo colonizado pelo sexo masculino, pelo falocentrismo, um movimento que serve à falocracia e ao patriarcado. É um movimento ANTI-MULHER.

Ainda, um adendo importante: antes de existir o feminismo, já existia a luta de mulheres por emancipação da hierarquia sexual que ordena e produz a economia patriarcal, e as primeiras formas de resistência feminina contra o patriarcado foram LÉSBICAS. Antes de existir o feminismo já existia a luta de mulheres e, há milênios, antes de existir o feminismo, o sexo masculino cria estratégias violentas, diretas ou veladas, morais ou materiais, simbólicas ou reais, linguísticas, discursivas, subjetivas ou objetivas, para colonizar, pulverizar e minar a resistência das mulheres pela emancipação do sexo feminino e contra a hierarquia sexual. E, cedo ou tarde, se pode perceber que a maioria dessas estratégias consiste, fundamentalmente, num ataque violento à classe de mulheres que representam a maior força e o maior perigo contra o patriarcado: as lésbicas. É preciso entender que, dentro de um contexto patriarcal, mulheres que amam mulheres não diz respeito somente aos sentimentos individualizados e emoções subjetivas, mas tem um sentido mais amplo e político: as lésbicas são aquelas que AMAM O SEXO FEMININO, nas sociedades em que o sexo feminino deve ser odiado, e PRESCINDEM DO SEXO MASCULINO, quando ele deveria ser idolatrado e referendado. Lésbica é a condição mais profunda de recusa à misoginia e ao falocentrismo que mantém a base do sistema patriarcal. Lésbica é a condição mais profunda de recusa ao falocentrismo dda subjetividade, dos afetos e desejos a que são submetidas as mulheres pelo sujeito do falo em sua profunda colonização. O falocentrismo e a misoginia são as condições mais fundamentais para forjar a subjetividade das mulheres, funcionam como força motriz da manutenção da hierarquia sexual. Observem, portanto, que, primeiro, o sexo masculino autoidenficado como mulher reivindicou ressignificar a definição e a condição feminina - mesmo sem nunca tê-la experimentado - nos fazendo distrair, ignorar ou negar o que define de fato a condição feminina no patriarcado e redefinindo a condição feminina a partir de outros termos: uma experiência totalmente dissociada da misoginia e com centralidade do falo, no sexo masculino, que, agora, se reivindica como mulher capaz de definir a mulher a partir de seu próprio sexo. Agora, o sexo masculino quer definir e ressignificar, também, a condição lésbica.

Mulheres, atentem e resistam.

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(*)Eu uso economia não no sentido estrito da palavra, que indica uma disciplina ou área do conhecimento que produz significados pras atividades ligadas ao mercado e ao dinheiro, mas seu sentido mais amplo: o conjunto de atividades humanas que, agindo de maneira integrada, geram e mantém o funcionamento de um sistema.



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