quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

"TODO HOMEM É UM ESTUPRADOR" NÃO É UMA GENERALIZAÇÃO QUE COMPORTA EXCEÇÕES,

MAS É, SIM, UMA VERDADE DENTRO DA CULTURA PATRIARCAL.

Quando algumas feministas afirmam que TODO HOMEM é um estuprador, essa sentença percorre, no geral, três caminhos interpretativos dentro do próprio feminismo (e da sociedade):

1. Há aquelas mulheres que, com o pavor imposto pela socialização feminina de não receberem o reconhecimento e a garantia de humanidade prometida pelos homens às mulheres de "bom comportamento" e às "boas" feministas, e reproduzindo piamente o típico discurso desesperado de homens quando são descobertos fazendo suas perversidades, elas se indignam junto com eles com o "absurdo" de fazer uma "generalização" dessas, porque "nem todo homem" e "não precisa generalizar", e rechaçam completamente qualquer possibilidade de se refletir a partir dessa sentença e compreender seu significado dentro da patriarcado. Não há possibilidade de diálogo e nem de produção de saberes e conhecimentos feministas com essas mulheres sobre esse assunto, elas não cederão à possibilidade de desagradar à lógica masculina.

2. Há aquelas que, não temendo desagradar à maioria dos homens, mas, também, não querendo desagradar a todos eles e romper definitivamente com toda e qualquer possibilidade de aprovação masculina, esperando, ainda, o reconhecimento e a aprovação de um grupo seleto de homens, os entendidos por elas como mais "desconstruídos", os "de esquerda" ou, simplesmente, os "caras legais", essas entendem a necessidade da generalização da sentença, dentro de um contexto estrutural que coloca homens enquanto classe/grupo/casta e generaliza a partir deste lugar, embora possa caber nele também o que elas e os tais machos desconstruídos/esquerda/legais - por ser justamente o que eles reivindicam para si mesmos - chamam de "exceção", ou seja, homens que não cabem na generalização porque nunca estupraram uma mulher, mas que são irrelevantes dentro de uma análise estrutural porque, obviamente, esta se falando de uma "estrutura", do "geral" e não das tais exceções. Há possibilidade de construção de diálogo e de conhecimento com essas mulheres, mas ela é limitada, geralmente ela estagna quando uma das premissas mais fundamentais do feminismo - "O pessoal é político" - vem à tona e o assunto se desdobra sobre suas vidas pessoais, suas experiências, suas histórias e sobre os homens de seu afeto.

3. Há aquelas que caminham de maneira geralmente consciente e deliberada (sabendo de toda a dificuldade e limitações inerentes a esse processo, mas dispostas a encará-las e construir, dentro do possível, suas vidas pautadas nisso) para a ruptura com toda e qualquer necessidade de aprovação e reconhecimento de todo e qualquer macho e sentenciam que não há nenhuma exceção na generalização e que homens são, sim, todos estupradores - NÃO HÁ EXCEÇÕES. Essas mulheres, no geral, são as feministas lésbicas, e há um extenso e profundo diálogo entre elas sobre essa sentença e suas implicações na história e na vida das mulheres e em toda história e prática das sociedades patriarcais. Não há limites para a produção de compreensões sobre o quão perversa pode ser a lógica patriarcal, o falocentrismo e a cultura e a prática política, social, parental, afetiva e erótica hierarquizada do sexo masculino sobre o sexo feminino.

Geralmente, os homens - e muitas mulheres heterossexuais também - odeiam muito essas mulheres (as lésbicas) e se recusam dar a aprovação e reconhecimento masculinos aos seus pensamentos, reflexões, falas, suas teorias e narrativas, suas subjetividades e criações artísticas, a seus feminismos e, até mesmo, as suas existências, como válidas, humanas ou coerentes e dignas de serem ouvidas, compreendidas, ecoadas. Por isso, lésbicas e, mais recentemente dentro da História, as lésbicas feministas, são as mais perseguidas, silenciadas, apagadas; por isso, dentro da História, da Literatura, da Ciência, dentro do próprio feminismo, enfim, dos registros humanos que narram e dão significados ao mundo, as memórias, as produções, as narrativas, compreensões, teorias e registros de lésbicas sobre sua própria condição e sobre seu modo de compreender o mundo e as sociedades patriarcais são escarnecidos, vilipendiados, amaldiçoados e aniquilados. E por isso, também, em tese, seria muito difícil pra uma mulher heterossexual mover seu pensamento, sua compreensão e até mesmo sua prática erótica e afetiva até esse ponto, até o ponto de compreender e aceitar profunda, radical e verdadeiramente que todos os homens são estupradores e, mesmo assim, conseguir continuar se relacionando afetiva e eroticamente com eles. É muito difícil e doloroso esse processo, sobretudo porque a gente, individualmente, está envolvida nele e constituída por ele: a vida toda, faz parte de quem a gente é, ser vítima dos estupros e dos estupradores que amamos - e reconhecer e aceitar isso radicalmente significa uma dor e um desterro imensos, causados por uma ruptura sem igual, muito profunda e radical, com o mundo, com o passado, com que somos, ou, mais precisamente, com quem fomos até aí.

Dito isso, retomando o tema central desse texto, o da possibilidade de se duvidar de que todos os homens sejam mesmo estupradores ou se haveriam as exceções* eu deixo uma pergunta então: levando em consideração que estupro é qualquer forma de coação, física, moral, psicológica, patrimonial, material, simbólica, subjetiva, com uso de força física ou não, que um homem aplique contra uma mulher para obter o coito, vocês conhecem algum homem na face da Terra que nunca tenha forçado coito com uma mulher embriagada, entorpecida ou adormecida; coagido namoradas jovens e inexperientes ou emocionalmente e psicologicamente adoecidas ou dependentes ao coito por meio de chantagem ou manipulação com promessas de bens materiais ou cobranças de ordem moral, afetiva ou emocional até conseguir obter o coito; que tenha ignorado um "não", uma aparente indisposição ou falta de interesse da mulher na relação sexual e seguido o coito sozinho no corpo da mulher sem, entretanto, a participação ativa e o consentimento efetivo dela; oferecido dinheiro a uma ou várias mulheres prostituídas pra obter o coito; se aproveitado à força, agarrando, sarrando, tocando uma mulher sem seu consentimento tentando obter o coito ou prazer sexual do corpo dela? Você conhece algum homem que NUNCA tenha tido NENHUMA dessas atitudes sequer? Porque se ele teve ao menos UMA dessas atitudes, uma única delas, ele É UM ESTUPRADOR. E se ele se preparou pra fazer, tentou fazer, começou a fazer e não logrou êxito, porque foi impedido por circunstâncias externas quaisquer, seja por agentes da lei, por outra pessoa ou pela própria mulher, ele também É UM ESTUPRADOR.

E ter se transformado num cara de esquerda desconstruído, ou num bom samaritano qualquer, e ter se arrependido de ter feito não faz o cara deixar de ser um estuprador - só faz o cara tentar convencer os outros que não fará mais (o que também é duvidável, porque a ideia de que mulheres devem o coito a homens é tão naturalizada por eles que eles vão exercitá-la por toda a vida, naturalmente, como se fosse um impulso natural esperar isso delas, eles vão fazer isso, seja com violência mais direta, seja de maneira mais subjetivas.

Por isso, eu digo, sem pestanejar: TODOS, eu disse T-O-D-O-S os homens já cometeram ou tentaram cometer alguns desses atos contra mulheres. TODOS. Nossos irmãos, tios, avós, pais, amigos, maridos, namorados. TODOS. Não há exceção.

Eu não tenho medo de dizer que TODOS os homens já estupraram alguma mulher na vida. PORQUE ISSO É A CULTURA DO ESTUPRO e todos os homens praticam a cultura do estupro, porque ela é natural pra eles.




*A justificativa da exceção serve para que possamos, nós, mulheres, sempre pensar que há um contingente de homens livre da acusação do estupro e que esses seriam, obviamente, os homens que amamos. A "exceção" é, portanto, o lugar em que as mulheres depositam suas esperanças no sexo masculino e, ainda mais: é a negação de suas próprias histórias. É a esperança da redenção de suas próprias experiências de violência com os homens, na desesperada tentativa de não se sentirem culpadas, de não sentirem o peso que o patriarcado deposita sobre nossas costas nos culpando por cada um de nossos estupros, desde o mais incisivamente violento ao mais naturalizado deles, as mulheres precisam acreditar que "nem todo homem", porque se "nem todo homem é um estuprador", nem sempre ser mulher será uma experiência forjada a partir do estupro. 

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