segunda-feira, 5 de junho de 2017

EM NOSSA SOCIEDADE, A VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NÃO TEM SUJEITO

Ou: Como as campanhas em prol do combate à violência contra as mulheres apenas escamoteiam, reiteram e reafirmam toda estrutura machista de nossa sociedade e a própria violência contra nós, as mulheres.



As mulheres têm sido vítima de violência. Quem é o sujeito dessa violência?

Mais uma vez, e como sempre, a responsabilidade recai sobre nós. A culpa é nossa.

A quem serve sugerir (ainda que sutilmente ou através de discursos velados) que a culpa da violência contra nós é nossa? Que a responsabilidade é nossa, que somos cúmplices ou que somos nós o centro do qual se irradia esse problema? A quem isso protege? Que dado importante está sendo apagado nessa questão? Por que esse apagamento? Quem é sempre protegido e resguardado pelas leis e instituições de nossa sociedade machista e misógina e mesmo nas campanhas de denúncia à violência contra mulheres? Quem? Adivinhe!


“As mulheres morrem”. E quem é o sujeito da ação que atenta contra a vida das mulheres? Por que a imagem das mulheres está sempre no centro das campanhas? Por que somos retratadas sempre fragilizadas, acuadas, inertes, apavoradas? Quem promove essa violência? Basta pra quem?

Numa sociedade em que homens, brancos, heterossexuais estão no topo da cadeia econômica, da política, das organizações e das instituições culturais, materiais e simbólicas dessa sociedade, é comum que as campanhas contra a violência perpetradas pela sociedade através desse sujeito homem, branco, heterossexual, sofram todo tipo de eufemismo e amenização, para que as agressões permaneçam o mais que possível no campo da abstração e os agressores não sejam identificados como aqueles que promovem essa violência e não se tornem, então, parte efetivamente combatida pelos grupos/identidades vitimados.


Quem bate? Quem mata? Por que nunca é dito?

Analisando campanhas de denúncia à violência contra mulheres, é possível perceber como a imagem destacada nessas campanhas é sempre a imagem feminina, o que, como sempre, nos expõe, a nós, mulheres, nos colocando, sutilmente, no centro da temática, basicamente como sujeitas de nossas próprias agressões, que aparecem nos textos das denúncias e seus slogans sem sujeito, implicando na correlação entre a exposição de nossas imagens, com a atividade denunciada.


A “violência”. Vamos combater uma abstração? Dizer “não” a quem?

Em quase nenhuma campanha, cartaz, meme ou slogan pude observar a denúncia da violência contra as mulheres creditadas a um homem. As frases geralmente estão em sua forma passiva e nunca em forma ativa, desvencilhando, assim, a ideia de que a violência contra as mulheres é cometida por homens e, volto a repetir, deixando a sugestão implícita de que somos nós, mulheres violentadas, o cerne e o verdadeiro problema de uma sociedade em que mulheres são violentadas e mortas, assim, como uma coisa acidental, como uma abstração, sem que isso tenha um sujeito de ação determinado – no caso, é óbvio, o homem.

Os textos e chamadas, no geral, aparecem assim:

“Cerca de x mulheres sofrem violência sexual no Brasil”
“Uma em cada x mulheres já foi vítima de violência”
“Estudo revela que x mulheres morrem por dia no Brasil”
“O índice de mulheres mortas no Brasil é de x%”

E por que não assim?

“Cerca de x mulheres são agredidas por homens no Brasil”
“Uma em cada x mulheres já sofreu algum tipo de violência masculina
“Estudo revela que x mulheres são assassinadas por homens no Brasil”
“O índice de mulheres assassinadas por homens no Brasil é de x%.”

Ou, ainda, assim:

“Cerca de x homens cometem violência contra as mulheres no Brasil”
“Um em cada x homens já cometeu algum tipo de violência contra mulher”
“Estudo revela que x homens assassinam mulheres por dia no Brasil”
“Os homens são responsáveis por x% de mortes de mulheres no Brasil”


A mulher sempre no cerne da questão – e sempre machucada, amedrontada, acuada, passiva – do jeito que o patriarcado gosta. Já imagem do homem quase nunca aparece.


A mulher, mais uma vez: nua, fragilizada, vulnerável, aterrorizada, inerte, no centro da campanha. O homem, violador, agressor, nunca se vê, senão em pequenas partes desmembradas, estratégia de desvio de foco de imagem e de desumanização da figura masculina.


Desmembrado, desumanizado, figura irreconhecível, não é o homem, deixa de sê-lo. Esse é o agressor: não sendo sujeito, torna a violência contra a mulher uma abstração.

Não é preciso ser nenhum especialista em semiótica e análise de discurso e nem em propaganda e marketing pra entender algumas formas que certos discursos assumem em relação à cultura que os engendra e a seus interlocutores e o seu porquê, ou seja, por que alguns slogans são escritos desta ou daquela maneira e não de outra. E nem sobre a relação fundamental entre o discurso e a imagem e sobre como a forma que se estabelece essa relação é fundamental e decisiva em campanhas publicitárias. Porque também nas imagens das campanhas a figura masculina é omitida ou desfocada ou aparece de forma positivada, defendendo bondosamente o fim da violência contra nós. Entretanto, em raras campanhas/imagens é possível observar o homem, a figura masculina, apontado e evidenciado claramente como violador, agressor ou assassino de mulheres.

Vejam, são as mulheres que sofrem, são as mulheres que são vítimas, são as mulheres que morrem. Não há agressor, não há algoz, não há assassino: as mulheres é que estão no centro da ação. Desta forma, são as mulheres que são colocadas no centro da temática e no centro dessas chamadas, logo, como cerne do problema, o que induz facilmente – numa sociedade machista e misógina como a nossa, e cuja cultura do estupro cresce cada vez mais, culpabilizando as mulheres pela violência que sofrem – a se pensar que, se as mulheres deixarem de sofrer essas violências, o problema estaria resolvido – assim mesmo: se elas forem capaz de deixar que isso aconteça, já que está e nós a centralidade da abordagem sobre a violência. Mas como nós poderíamos deixar de sofrer com esse problema em que somos a figura central apontada em relação a ele? Neste caso, como o cerne do problema está sendo associado à figura feminina, porque a masculina é apagada e invisibilizada em relação ao processo de violência, o que se pode esperar que aconteça para que mulheres deixem de sofrer mais violência? Que os homens deixem de violentar? Como seria possível esperar isso se os homens não são nunca nomeados como agentes dessa violência? O que se espera é que aquela que é a sujeita passiva da violência, cesse de ser, ou seja, que ela não seja mais aquela que “sofre” a violência. E, pra isso, nossa sociedade já cultiva, há séculos, as instruções pra que nós, mulheres, solucionemos esse problema, pra não sejamos mais aquelas que “sofrem” a violência – assim mesmo, dessa forma, sem sujeito violador, sem agressor, como um acidente, dessa forma abstrata – o que a mulher deve fazer é o que todos já sabemos: não sair de casa em horários “perigosos”, não desagradar ou provocar os homens, andar nos vagões de trem/metro e outros espaços designados somente a elas, não se embriagar, não dançar sensualmente, se vestir decentemente, enfim, se comportar conforme a sociedade espera que se comporte uma mulher “de verdade”, uma mulher “honesta”, uma mulher “que se dá o respeito”.



A mulher que disfarça (ou omite) a violência cometida contra si mesma torna-se cúmplice de seu agressor. Tá pasma? Eu também.

Além disso, ou, ainda, como desdobramento disso (de campanhas que visam denunciar, mas que, como cão correndo atrás do próprio rabo, não conseguem romper com a cultura que as engendram e com o ciclo que culpabiliza a mulher), é possível perceber, ainda, a responsabilização e a condenação de mulheres que “disfarçam” a violência e/ou “silenciam” sobre ela, como se as mulheres assim o fizessem por desejar e não por medo, coação ou fragilidade emocional e/ou financeira frente a seus agressores, o que, mais uma vez, corrobora e reafirma mais os mitos machistas e misóginos que estão por trás dessas campanhas – nesse caso, em específico, a sugestão de que haveriam mulheres que “gostam de apanhar”, ou que são “cúmplices” da violência que sofrem, justamente essas que “disfarçam” as agressões ou que “escolhem” o silêncio. Ou seja: mais uma vez, a mulher está no centro da questão e é a culpada por sua agressão.

Mais culpabilização da vítima. “A solução passa por si.” Ou seja, a violência não tem um sujeito, ele não aparece, é impossível identificá-lo ou, sequer, associá-lo, nessas campanhas, à figura masculina, mas cabe à mulher agredida, muitas vezes sem coragem ou forças, a solução do problema.

Pra corroborar ainda mais com essa ideia velada de que a violência contra as mulheres não tem um sujeito, pra proteger o homem, pra não denunciá-lo e não colocar em evidência o sujeito homem como agente e perpetuador dessa cultura nojenta e nefasta, que estupra, viola, mutila e mata as mulheres, observem, ainda, como, ao mostrar os homens – que já não são apontados como agressores – as campanhas os retratam de forma positiva, como “colaboradores” das mulheres, evidenciam os homens de forma bacana, generosa e simpática como aqueles que, não sendo agentes da agressão, são justamente as figuras boas e cheias de empatia que vão “ajudar” as mulheres a combater a violência. Há pouquíssimos registros em campanhas de combate à violência contra mulheres que mostrem os homens como canalhas, agressores, estupradores, assassinos, mas não faltam imagens que os mostre como os empáticos, bondosos e seres cheio de humanidade que vão ajudar nesse combate.


Quando a figura do homem pode ser identificada com uma imagem claramente masculina? Quando é mostrada em apoio às campanhas.

É preciso urgentemente acusar, apontar os homens como causadores da violência contra as mulheres. Os homens não são os redentores dessa causa, como nos induz a crer essas campanhas construídas dentro da lógica machista vigente na nossa sociedade. É preciso tirar a mulher do lugar central dessas agressões e destiná-lo ao homem. A agressão tem um sujeito, e ele é masculino. É claro que é importante convocar os homens ao combate da violência contra as mulheres, mas, enquanto não for dito a eles, não for apontado, não for evidenciado objetiva e diretamente, que também TODOS ELES são parte ativa e culpada nessas agressões – TODOS! – quando agridem suas companheiras, suas irmãs, suas mães, suas colegas e quando perpetuam o machismo de diversas outras formas (“piadinhas” machistas, xingamentos machistas, controle e condenação da sexualidade feminina etc), enquanto isso for silenciado e escamoteado, enquanto os homens e o gênero masculino forem poupados e as mulheres continuarem a ser colocadas no centro dessas ações agressivas, essa cultura machista não será desconstruída.


Esse é o homem que pode ser claramente identificado nas campanhas sobre a violência contra às mulheres. O homem não agride, não espanca, não tortura, não mata. Ao contrário, vejam só, ele contribui na luta das mulheres.


QUEM AGRIDE, VIOLENTA, ESTUPRA E MATA AS MULHERES SÃO OS HOMENS. Não são as crianças, não são os idosos, não são outras espécies de animais, não são ETs, não são pessoas ao acaso: SÃO OS HOMENS! Nossos parceiros sexuais, nossos amigos, nossos amantes, namorados, maridos, nossos familiares, os colegas de profissão, de classe ou mesmo desconhecidos, mas HOMENS.


Das poucas imagens que pude encontrar em que o agente da agressão aparece claramente identificado como um HOMEM.


Outra forma de abordagem: a mulher não aparece desfigurada, nem aterrorizada e nem inerte, ela não ocupa o centro da mensagem visual e o texto, no lugar central da denúncia, credita ao homem, sujeito da ação, a agressão cometida.



É preciso dizer isso urgentemente! É preciso dizer isso abertamente! Para que se possa criar, de verdade, uma frente de combate não apenas à violência, mas, também, a seus agentes, aos agressores, ou seja, os homens. Enquanto a violência contra nós for mostrada somente como uma abstração ou uma ação sem sujeito, continuaremos sendo espancadas, estupradas, mutiladas e assassinadas bem debaixo de campanhas publicitárias bonitas e bem executadas, de banners, cartazes, outdoors e anúncios bonitos, requintados e bem pagos, produzidos por agências de propaganda e seus publicitários (majoritariamente homens, e, em muitos poucos casos, mulheres combatentes e/ou feministas, estamos certas disso).

Sigamos, mulheres, à luta! Sigamos combatendo e cortando as picas!

Com amor e facadas,

Ana.

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Esse texto foi publicado originalmente pelo coletivo de mídia Das Lutas em setembro de 2014 e merecia uma revisão, mas eu tô com preguiça de fazer. :)

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